A LAPINHA de natal

 

 

                                    “Meu menino Deus, aqui vós ficais,

                                    Até para o ano se vós nos deixais.

                                    Se vós nos deixais damos graças a Deus –

                                    Minha Nossa Senhora, e o Senhor Santos Reis.......”

 

        Este bem-dito fechou  o calendário de cada ano  nos lugares de criatório de gado, por todo o Nordeste do Brasil, – sintetizando ganhos,  e conformações. Ao mesmo tempo abriu o ano seguinte depositando-lhe, esperanças, desejos e muitos pedidos.

         A criação extensiva de gado exigia, claro, áreas extensas. Assim as células familiares ficavam distantes;  também as casas  guardavam entre si  gleba  suficiente para a pastagem de cada rebanho.

        A necessidade destas “lonjuras” proporcionou uma convivência entre senhores e escravos mais

humanizada, a natureza da atividade dispensa a senzala,  muito diferente da sociedade das regiões da monocultura. Da cana de açúcar ao café, passando pela mineração.

 

O NATAL, O FIM DA DISTÂNCIA.

       O Natal não se resumia a uma noite, um dia. O Natal era o  ponto do encontro entre familiares, conhecidos,  amigos. A casa de um dos membros do clã, em cada localidade,  como se eleita  para a celebração, de modo vitalício. Casa cheia:  redes de coloridos variados enfeitando a todo ambiente – dos quartos, salas, varandas e até terreiros. Os parentes mais distantes, às vezes de outras províncias, outros estados (depois), chegavam com uma semana, 15, 20 dias de antecedência. Noites a fio os de mais perto, em visita. As crianças mudavam-se: conhecer os tios, os primos, os parentes. A festa, o Natal, em suma era a humanização da mistura social – senhores e escravos; pobres e ricos; fazendeiros e vaqueiros; a aproximação das idades; o ponto de partida da continuação dos laços familiares. Os primeiros sinais da força hormonal; as primeiras manifestações amorosas; a continuação iniciada no Natal passado; as manifestações inocentes nas cantigas de roda.

-         Eu pisei na cobre verde,

A cobra verde é um bom sinal,

É um bom sinal, é um bom sinal.

Traz o amor espanta o mal.

   

      Quanta inocência, quanto sonho. – Desfeitos, não raro.

      O Natal trazia também para as meninas uma dose de dor. Naquelas noites muitas mocinhas – 14, 15 quando muito 17 anos - eram dadas em casamento a homens viúvos, via de regra já velhos. Promessa sem volta - salvo pelo acudimento da morte. Seus pais, pela preservação do prestígio, pela soma das fortunas ofereciam as filhas em casamento, indiferentes aos apelos das vozes juvenis a ecoar no terreiro, amores desfeitos; promessas de novos amores;

-         Os olhos da cobra é verde,

Só hoje que arreparei,

Se arreparasse a mais tempo

Não amava quem amei

                                                   Menina dos olhos pretos,

                                                   Não olha pra mim chorando,

                                                   Mode o povo não dizer –

                                                   Que nós tamo namorando!

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OS PREPARATIVOS.

        Os preparativos também se iniciavam há dois três meses, ou mais: os doces de frutas e misturas variadas; a variedade enorme de produtos do leite; as iguarias de carnes incontáveis – carne seca de animais de tantas espécies; as lingüiças de feitura e sabores incontáveis.

          Ah! Mas nada se iguala ao gosto no preparo das bebidas. Os licores de frutas existentes em toda a redondeza. Os gracejos em torno de cada. Os licores dosados com “pau-ferro”; pau-tenente;

com pitadas de catuaba........

         As pessoas com algum dote artístico se punham mês inteiro a fazer as figuras de santidades e animais para montar a Lapinha. Oportunidade em que algumas crianças despontavam com habilidade, jeito e cuidados especiais. Usava-se quase sempre o barro, (por isto o nome barroco); e na feitura de algum apetrecho, madeira mole. Figuras tocas no acabamento, sem colorido, ou quase sem.

       

A NOITE DE NATAL.       

          Raramente há lua cheia no Natal. O despontar da lua indica a hora de iniciar o terço.

        As rezadeiras – entram, ocupando seus lugares, mais próximo ao altar, numa boa distância das santidades. As mulheres, de todas as idades, dentro da sala enorme; os homens fora, no terreiro, rodeando uns; outros mais distantes “remuendo” memórias de feitos, de saudades.

         As velas em cordão, pavios envoltos por cera de abelha de espécie diversa, proporcionam também, ao irem queimando, colorido e aroma variado.

        O consumo de licores e paçocas de carnes e de frutas, por tantas horas, não foi suficiente para dar ao  terço beleza, plástica e entusiasmo, como convém o encerrar de um ano de fartura e saúde regular.

          A dona da casa  desejosa de retribuir, em louvores, ao Menino Deus as graças alcançadas,

convida às rezadeiras a inverter os papéis:

-         Ôh! Comadre,  acho que a Santa dos Preto Gato, Nossa Senhora das Candeias, quer a abertura, deixa ela.

E a melodia mais bonita dos Bem-Ditos do Brasil ecoa, era como se a chegada se desse de dentro  para fora; como se a partida fosse de fora para dentro: todo espaço ocupado; os corações abertos à devoção.  

Ali, no sertão do Nordeste do Brasil, as santidades e divindades se misturaram. Misturados também estavam os homens e as mulheres. As crenças, as devoções passando ao largo das diferenças raciais, sociais, econômicas. A rudeza dá lugar a um ponto mais alto na civilização humana.

        

          “Bendito louvado seja, a luz que nos alumeia,

           Valei-me  Nossa Senhora,

           Oh! Mãe de Deus das Candeias                        (voz por dentro)

-         Valei-me Nossa Senhora,                                            (voz por fora).

-         Oh! Mãe de Deus das Candeias

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           A aristocracia do nordeste pastoril destinara Nossa Senhora das Candeias ao domínio dos seus escravos. Sem nenhum desmerecimento para com Nossa Senhora do Rosário, encarregada

 a assistir ao homem escravizado, desde 1409, pela Igreja Católica, na Alemanha.

             Como que por milagre, é chegada a hora da mais absoluta sublimidade, a meia noite, a hora do nascimento da vida, dos deuses, da santidade. Em fim – da Criação. E todas as vozes, todos os peitos arfam a força e o sentimento de um abraçar a céus e terras; pessoas e animais; o conhecido e o desconhecido; o saber e a inocência. À meia noite Ecoa o Bem-Dito.

 

-         Bateu asa e contou galo,

     Respondeu a mãe de Deus,

     Quem canta nestas alturas

      É o nosso Menino Deus                        (voz por dentro)

 

        É o nosso Menino Deus                        (voz por fora).