A Fome

Cruzei a Haddock Lobo quase toda, ontem, literalmente caçando algo para comer e tinha de ser algo ao menos decente. Como não achara nada assim num lado da rua, atravessei acompanhado de Jack White, com sua performance de "Love is Blindness", e não tinha alcançado a outra margem sem que a criatura passando interferisse.

Era do tipo que basta decidir aparecer em público que todas as vias se ajustam ao seu andejar. Sabia o ângulo e o momento precisos em que deveria inclinar a cabeça a fim de que o vento levantasse as mechas do cabelo castanho ondulado - penteado na medida certa para que a mãe não lhe torrasse a paciência antes de sair -; mas que erguesse só do lado direito, na altura da sobrancelha, para desvelar a inocência de seus aparentes 16 anos em sua mirada.

A sobrancelha tremeu bem de leve, por um instante. A bochecha, com aqueles pelinhos brancos quase invisíveis da puberdade, também. Tive a impressão de que a quina dos lábios, já saudosa, queria ficar e dizer "oi", mas era tarde. Somente o pescoço surgiu brevemente, mais uma vez, antes que os cabelos me fossem dando adeus.

Continuou com seu vagar apressado, deixando como rastro no ar um perfume que mesclava o amaciante impregnado naquela camisetinha azul que deixava o baixo-ventre à mostra e naquele short jeans curto, meio folgado, que ela ia balançando como um sininho; o cheiro do shampoo e o seu próprio.

Assim ela se foi por completo, ciente de que eu a olhava com curiosidade agora à distância, enquanto os outros homens a fitavam com a mais estúpida e ordinária vontade, apenas porque ela badalava aquele sininho e eles o queriam mais e mais dobrado. Para esses, a tijucana só se adiantava um pouco mais e com desconhecida ironia em seu caminhar rebolava mais, ao mesmo tempo que jogava mais poeira para trás, com os pés.