A Cultura Supranacional

Guilherme Kujawski
Cultura armazenada em substratos extraterrenos
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Kuja · São Paulo, SP
19/2/2007 · 136 · 12
 

Como a cultura popular é apropriada por grupos nacionalistas com o intuito de legitimar regimes autoritários? O entendimento deste mecanismo é o ponto de partida para a defesa da hipótese da cultura "supranacional", uma nuvem de sabedoria universal que pairaria acima do indivíduo e das sociedades nacionais. A cultura ficaria alocada, nesta visão um tanto quanto tresloucada, numa localidade extraterrena neutra, semelhante ao mítico espaço etéreo no qual estariam localizados os Registros de Akasha, o conjunto de todos os conhecimentos humanos e universais. Os indivíduos que conseguissem transcender as noções de "cultura" e de "sociedade" (ou só a de "cultura", já que praticamente esta substituiu a de "sociedade") teriam condições de circunscrever os vértices ideológicos e políticos de uma superestrutura cultural (na acepção marxista) e assim beber elementos da cultura universal direto na fonte.

A politização da cultura

A propaganda política se vale, não raras às vezes, de expedientes que muito poderiam interessar à comunidade psicanalítica, a saber, técnicas de manipulação de símbolos que, ao serem devidamente inculcados na massa, induzem tipos especiais de reações, muitas delas pavlovianas. Comportamentos estes que beiram a histerias coletivas similares às registradas por etnólogos que estudam comunidades tribais. O psicólogo russo Serge Tchakhotine, que analisou a fundo o tema, comparou os métodos de propaganda política nazista a um “envenenamento da alma”, não muito distantes de uma “coerção psíquica” e, no clássico A mistificação das massas pela propaganda política, escreveu outras expressões bem familiares aos profissionais do hipnotismo.

De que forma os nacionalistas se apropriam de símbolos com o intuito de manipular as massas? Numa primeira vista é óbvio os nazistas terem escolhido a suástica como emblema do Partei, um símbolo que é, ao cabo e ao final, ariano. Entretanto, há outras escolhas não tão óbvias que bebem em fontes folclóricas ou da cultura popular, sejam elas reais ou inventadas. O prato ideal para nacionalistas a procura de elementos culturais que sirvam de calço a objetivos políticos nacionalistas são os costumes, tradições e cerimoniais estagnados, em suma, práticas que se estabilizaram e se automatizaram no decorrer do tempo. Quanto mais imóvel e imutável, melhor. Os costumes vivos, mais afeitos a releituras, desconstruções e upgrades, não servem para os propósitos nacionalistas por serem alvos móveis.

As apropriações da cultura popular para fins nacionalistas não é coisa do passado. Foi assim que surgiu, na antiga Iugoslávia, o turbo-folk, um pastiche de gênero musical que virou o verdadeiro hino dos Chetniks, os nacionalistas sérvios. A introdução de elementos da Eurodance, composta por drones eletrônicos, em antigas canções do folclore sérvio provou ser uma combinação ideal para os nacionalistas xenófobos. A união kitsch entre dois gêneros musicais distintos para fins nacionalistas foi replicada no casamento de Ceca, a rainha do turbo-folk, e Arkam, o sanguinário líder de um exército paramilitar sérvio.

No caso brasileiro, qual seria a brecha cultural a ser explorada por nacionalistas? O bumba-meu-boi estaria fora de cogitação devido a sua enorme flexibilidade e dificuldade de se encontrar elementos puros em suas diversas manifestações, sejam elas do Maranhão ou do Piauí (ou outras regiões). O espetáculo Bull Dancing, concebido por Marcelo Evelin, é uma livre interpretação do auto e foi concebido ao arrepio dos nacionalistas. A história da grávida Catirina, que tem desejos de comer a língua de um boi mágico, foi traduzida com toda a força de uma expressão universalista, passível de ser lida por indivíduos pertencentes a outras culturas. Se um grupo de nacionalistas brasileiros desse um golpe de Estado, teria duas opções para "inventar" uma simbologia de identidade nacional: adotar o carnaval de sambódromo, que há muito tempo tornou-se um cerimonial estático e quase vazio de sentido; ou incorporar em sua simbologia tradições armazenadas em perdidas instâncias primitivas, como as indígenas, e assim forjar tradições puras e não corrompidas pelas "culturas hegemônicas".

Ainda não está claro como a cultura é politizada por grupos xenófobos com o intuito de forjar uma “memória nacional” – o que se constata é que costumes estáticos, sem movimento, criam brechas, pontos de irrupção para pontos de inflexão centralizadores. Ademais, o que parece estar claro são os alvos escolhidos para a perpetração das fraudes culturais: tradições que, com o excesso de repetição, tornaram-se cerimoniais vazios. E, se os nacionalistas não encontrarem tal alvo, então eles simplesmente o inventam, segundo a tese do historiador inglês Eric Hobsbawn no livro A invenção das tradições.

Cultura e sociedade

Logo, as manifestações da cultura popular devem adquirir dinâmicas que não as prendam em bunkers culturais ou regionalismos de diversos matizes que as tornem presa fácil para grupos nacionalistas. Para tanto, devem absorver uma mitologia transcultural e uma universalidade não aristotélica, elementos que dificultariam as apropriações políticas e facilitariam seu ingresso na esfera dos “bens universais”. Tal tarefa é complexa, pois implica em remover a cultura (no sentido amplo) da esfera das leis positivas e, assim, torná-las sujeitas às forças das leis naturais. O paradoxo é colocar algo que é comprovadamente fruto das atividades humanas no mesmo quadrante, por exemplo, das leis da física (melhor: da mecânica quântica). Problemas estruturais resolvidos com várias soluções em paralelo: integrais de Alaíde Costa cantando "O Jangadeiro" somando-se aos de Orson Welles filmando It's All True. Buracos de ligação espaço-temporal.

A primeira tarefa é reconstituir o conceito de sociedade à luz de uma inspiração holista e, em seguida, resistir às tentações formalistas de entender a sociedade no sentido de uma comunidade presa a agenciamentos mercadológicos, em uma manobra que associa o sistema cultural à economia capitalista. Uma das prioridades, na execução desta empreitada, é separar a noção de cultura da de sociedade – levando em conta que viver em sociedade significa fazer concessões, e, ao se falar em “concessões”, falamos eminentemente de concessões políticas. Faz-se mister, portanto, resolver a equação implícita na antinomia sociedade e cultura e formular uma crítica às políticas da cultura (e não às políticas culturais, tema alheio ao objeto da presente reflexão).

É importante ressaltar que não cabe à presente reflexão criar uma nova teoria da cultura ou entrar em detalhes discursivos sobre as grandes dicotomias que têm mobilizado o pensamento antropológico. Frisa-se apenas que a proposta de uma teoria supranacional de cultura está mais associada a uma sociedade como organismo espiritual do que a uma sociedade tal como é entendida pelos arautos da antropologia econômica. Desta forma, ensina-nos Eduardo Viveiros de Castro, a teoria proposta tenderia mais para a noção de universitas do que a de societas. Em suma, e ainda citando o antropólogo: “a cultura seria uma realidade extra-somática de tipo ideacional”.

O common cultural

Na Inglaterra e no país de Gales, em tempos de antanho, o common (de common land) era um pedaço de terra sem proprietário reservado à pastagem de animais da comunidade. O surgimento da sociedade industrial e a subseqüente introdução de propriedade privada aceleraram o desaparecimento de qualquer vestígio de "terra sem dono". Mas aqui estamos restritos ao mundo material, do qual é praticamente impossível destacar as noções de objeto e propriedade. Mas e se a noção de common fosse transposta para uma área cinzenta simbólica, para um setor de onde se originou todo o repertório cultural da humanidade? A visualização de tal substrato cultural suprabiológico e supranacional seria impossível sem os recursos da metáfora, portanto é conveniente justapor com noção de common a figura dos Registros de Akasha, uma espécie de banco de dados espiritual onde estaria armazenada, além de todo o conhecimento humano, toda a história da existência universal. E os registros têm imanência, como por exemplo, quando dois indivíduos têm a mesma criatividade em locais, circunstâncias e tempos diferentes.

Qual seria o elemento mais próximo dos Registros de Akasha nos dias de hoje? Talvez os servidores descentralizados da Internet? Ou uma ilha no Second Life? Seja onde for: longe das tradições puristas (tão caras aos Tartufos da política), livre das dicotomias antropológicas do tipo nacional e estrangeiro, tradicional e moderno, central e periférico, popular e erudito – a cultura estaria pronta para experimentar uma nova abordagem, menos racional e mais fenomenológica, menos religiosa e mais mística. O preço desta transposição é que a humanidade teria obrigatoriamente que repensar conceitos agregados à cultura, como os de autoria, estética, governo, privacidade, comércio, amor, parentesco, etc. Teria que repensar todos os sistemas de vida, enfim.

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Higor Assis
 

Kuja.

Muito bao a reflexão e o entendimento da sua opinião. A cultura já esta comprada a tempos, por ela ter virado um comércio ambulante os futuros formadores desta cultura já fazem com que suas contribuições ao mundo cultural, tanto na arte, música entre outros, acaba também se dilatando e não se dão conta do valor das suas próprias contribuições e se esvazia a forma de entendimento sobre o que deve realmente ser posto a prova,
Mas será que, esta democratização sem limites é tão ruim assim ???

Higor Assis · São Paulo, SP 15/2/2007 15:55
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Kuja
 

Olá Higor,
Pelo que entendi de sua pergunta, acho que não. "Democratizar" a cultura é o mínimo que deve ser feito. Mas há conotações mil no verbo "democratizar"...

Kuja · São Paulo, SP 15/2/2007 17:04
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Egeu Laus
 

Kuja,
Um pequeno reparo: A suástica (swastika do sânscrito) e' símbolo que vem da Índia, há pelo menos 3.000 anos, presente no Hinduismo (parece-me que depois utilizada no Budismo) e portanto não tem nada de "ariana" no sentido de "alemã", pelo menos. Por certo que vinda dos Ários que se consideravam "superiores" aos hindus, mas nem por isso menos "orientais", se era essa a conotação.
Mas o conceito de um "common cultural" é atraente...
Empreitada difícil será revalorizar valores místicos, para além da vala comum a que foram relegados nas últimas décadas (pelo menos no Ocidente pós Alan Watts) rotulando-os como coisa de "bichos-grilos" e fanáticos. (gostaria de conhecer Gregory Bateson, você leu?)

Espiritualmente ainda estamos na Idade da pedra como alguém comentou. (Mas o que quer dizer "estamos"? O levantamento será estatístico?)

Abraço!

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 19/2/2007 03:13
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Kuja
 

Caro Egeu,
Obrigado pelos comentários. Sobre a suástica, creio que seja um simbolo oriundo da Índia, de onde se originou o povo indo-europeu. Acho que você acertou sobre os Ários (eu não os conhecia). De qualquer forma, observamos um certo clima mísitico entre os nazistas. Há um livro sobre isso, creio que "As Raízes Ocultistas do Nazismo". Sobre Gregory Bateson, posso dizer que o conheço um tanto. Fizemos uma longa pesquisa para a montagem de uma exposição sobre cibernética em Julho de 2006. Li com muito interesse "Steps to an Ecology of Mind". Há visões antropológicas presiosas lá. Traduzi também um pequeno conto dele: http://www.erratica.com.br/index.php?page=2
Abraços,

Kuja · São Paulo, SP 19/2/2007 09:31
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Egeu Laus
 

Kuja,
Obrigado pelo link sobre Bateson.

Cultura de almanaque tirada do Consulado indiano:
(...) "O grande acontecimento histórico que fundamentou a cultura indiana foi a invasão dos ários que penetraram pelo noroeste da Índia, região do Punjab, entre 1500 e 800 A.C., ou mesmo antes disto. Eles encontraram no Paquistão, no vale do Indus, uma das primeiras civilizações do mundo, maior que a do Egito e Mesopotâmia juntas, com uma organização social grandemente desenvolvida."(...)

Ou então num panfleto turístico:
(...) Período Védico:
Em 1500 a.C. começam chegar à região do Indo os indo-europeus ou ários, cuja vida narra-se nos Vedas, livros sagrados escritos em sânscrito. Este povo estabelece-se na zona do Punjab, dedicando-se fundamentalmente à agricultura e pastoreio. (...)
Este assentamento levou o governo das diferentes tribos (com a eleição de um chefe, cargo que acabou sendo hereditário) a realizar uma divisão de classes, dependendo do trabalho efetuado. Assim, os ários ocuparam os principais postos, enquanto que os habitantes da pele escura passaram a ser escravos formado a casta "varna" que significa textualmente, cor. Os ários por sua parte dividiram-se em brahmanes, sacerdotes, kshatriya, guerreiros, vaishya, agricultores e shudra (servidores). (...)

Abraço!

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 19/2/2007 10:07
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Egeu Laus
 

Kuja,
Você conhece "A Natureza das economias" (The Nature of Economies) de Jane Jacobs?
Foi lançado pela editora Beca de São Paulo, em 2001.
abraços

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 19/2/2007 11:11
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Kuja
 

Opa! Mais uma vez obrigado pelas informações. Há um erro de revisão no meu comentário anterior: preciosas, eu quis dizer. Um corretor ortográfico faz bem de vez em quando :-)

Kuja · São Paulo, SP 19/2/2007 11:25
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Kuja
 

Não conheço o livro, Egeu. Você recomenda?
Abs

Kuja · São Paulo, SP 19/2/2007 18:05
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Egeu Laus
 

Recomendo veementemente.
Você vai se surpreender com as idéias que ali estão colocadas.
Acredito que o livro só não teve maior repercussão por não estar escrito como um ensaio teórico (e assim seria "respeitado") e sim à maneira de Platão todo em diálogos. Desconfio que ali se colocam novos e originais argumentos sobre economia, recuperando inclusive o seu sentido original " eco-nomia' (algo como gerenciamento da casa?), portanto um ecossistema.

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 19/2/2007 22:28
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Egeu Laus
 

Uma breve descrição do livro e um telefone (melhor que o mail) para você tentar comprar um exemplar.
Abraço!

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 19/2/2007 22:45
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Kuja
 

Opa! Legal a dica! Estava lendo o prefácio de José Paulo Paes, tradutor do livro "A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy" e fiquei chateado ao saber que o autor, Laurence Sterne, também se valia das enclosures (grilagem de terras comunais) para o incremento de suas propriedades... Ninguém é perfeito.

Kuja · São Paulo, SP 20/2/2007 10:22
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toinho.castro
 

olá, meu amigo... agradecendo e comentando sua dica sobre o rubber vall, devo dizer que talvez não a tenha entendido. e se entendi, da forma como penso que posso ter entendido, acho que o overmundo cumpre justamente a função de interligar as diversas partes do trabalho numa comunidade. abrir uma outra "frente" de interação talvez complique mais do que simplifique o processo de estruturação de uma narrativa que já é, por si só, por suas características fudamentais, fragmentária.

amanhã postarei novos capítulos, ficaria feliz se você pudesse acompanhar essa jornada.

vi que você tem colaborações bem interessantes, que tem muita relação com o que venho pensando e fazendo. vou acompanhá-lo.
grande abraço.

toinho.castro · Rio de Janeiro, RJ 12/3/2007 01:32
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