Alvorada, 16 km de Porto Alegre, 2003. Aquele ano marcaria a primeira tentativa de Evandro Berlesi de realizar um curtametragem inteiramente filmado na cidade. Com a dificuldade de angariar recursos, a ideia acabaria armazenada. Dois anos depois, em 2005, Evandro retomaria o projeto e o apresentaria à prefeitura de Alvorada, que não demonstraria muita empolgação com a proposta.
As coisas só começariam a mudar em 2008, cinco anos após a primeira tentativa. Aproveitando-se da visibilidade e do sucesso de seu livro recém lançado, Eu Odeio o Orkut, Evandro decidiria que ele mesmo teria que começar o projeto sozinho, sem esperar pela prefeitura ou quem quer que fosse. Tudo começaria a se ajeitar e o que era curta, rapidamente viraria um média-metragem e, com algumas mudanças no roteiro, acabaria se transformando em um longa, chamado Dá 1 Tempo. Com o auxílio de pessoas e empresas de Alvorada, o filme seria concluído, exibido em praça pública e distribuído em videolocadoras, atingindo êxito na comunidade.
Olhando assim, parece que as dificuldades viraram sucesso num passe de mágica, mas foi preciso batalhar. Bastante.
Economia acima de tudo
Quando começou a gravar o filme, Evandro sentiu que precisava economizar muito – incluindo pessoas. “Geralmente no primeiro dia de gravação, a equipe é de 7 ou 8 pessoas, o que já é bem menos do que o tradicional, mas vai passando o tempo, o dinheiro vai acabando, e, pra economizar com transporte e alimentação, fomos diminuindo o número até que restaram apenas eu, o Rodrigo (ex-sócio de Evandro na produtora Alvoroço Filmes e co-diretor do filme) e um assistente para operar o microfone boom. Só assim se consegue fazer filmes de longa metragem com baixíssimo orçamento”, conta.
Dá 1 Tempo é o clássico exemplo da produção que tinha tudo para dar errado, por ter começado apenas com recursos do próprio Evandro. Além disso, a grande maioria dos envolvidos trabalhou como voluntário, sem ganhar nada. Inclusive os músicos, que cederam suas obras gratuitamente. “Aqui em Alvorada funciona assim: quando anuncio que vou fazer um filme, disponibilizo um local para os interessados entregarem CDs para fazerem parte da trilha do filme. No primeiro filme, recebi uns dez CDs e coloquei no mínimo uma faixa de cada um, já no segundo filme (Eu Odeio o Orkut), recebi uns trinta CDs e tô tentando fazer a mesma coisa, mas tá difícil, pois dessa vez apareceram cantores de gêneros bem diferentes do que o do filme, tipo sertanejo e vanerão – ritmo tradicional do Rio Grande do Sul -, e não tenho como usar na trilha de um filme jovem”, desabafa.
Mas mesmo com o apoio dos músicos, ainda faltava algo importante: mais recursos. E o que poderia ter significado a desistência de levar o projeto adiante mudou quando empresas do município aderiram ao patrocínio, possibilitando a finalização do trabalho.
Apesar disso, Evandro calcula que colocou aproximadamente R$ 10 mil no projeto, sendo o custo total da produção. “A grande maioria das pessoas trabalhou de graça e os equipamentos foram alugados pela metade do preço, porque fechamos apoios. O dinheiro dos patrocinadores foi mais para a finalização, divulgação e para a nossa sobrevivência mesmo”. E completa, de maneira séria: “Não vá pensar que os patrocinadores pagaram quantias significativas, foi mixaria mesmo”.
Distribuição?
Com o filme pronto, poderia se imaginar que as dificuldades teriam diminuído e que a divulgação seria mais fácil. Na verdade, o que ocorreu foi exatamente o oposto. “O filme não tem distribuidora, não tem nem um DVD original, produzido na Zona Franca, é um filme num DVD caseiro. Tentamos algumas distribuidoras mas não deu em nada”, relembra Evandro. Sem uma distribuidora para garantir que o filme seria visto, o jeito foi contar com algo que, à primeira vista, seria o mais improvável: a pirataria.
Evandro explica. “A pirataria nos ajudou. Nem posso dizer que um DVD com o nosso filme seja um DVD pirata, pois pirataria é uma cópia falcatrua de algo original, e nosso filme nunca teve um DVD original. E o fato do filme circular entre DVDs piratas, sendo inclusive campeão de vendas, nos deixa muito felizes. Também não temos nenhum tipo de licenciamento, a obra é difundida de maneira informal mesmo”. Não há números oficiais sobre a comercialização das cópias, mas Evandro é corajoso ao afirmar que o filme já teve mais de um milhão de espectadores, pois está sendo exibido pelo Brasil afora desde 2008. Só em Alvorada, o filme teve 25 mil espectadores na primeira exibição ao ar livre, além de ter sido o mais locado por um ano.
“Um fato importante é que ele teve lançamento na Mostra de Cinema de Tiradentes (MG), onde recebeu muitas críticas positivas”, conta. E quando Evandro esteve no Rio de Janeiro em outubro de 2010 achou uma cópia pirata no centro da cidade. Segundo o vendedor, a cópia já existia há algum tempo e tinha saída. Até fora do país Dá 1 Tempo já foi visto, quando o diretor gaúcho da Casa de Cinema de Porto Alegre Carlos Gerbase esteve na França e fez uma exibição de filmes de baixo orçamento.
A importância da tecnologia
As facilidades que a tecnologia oferece também auxiliaram na produção e divulgação de Dá 1 Tempo, como aponta Evandro: “A tecnologia nos ajudou em tudo, pois se não fosse o cinema digital nunca teríamos um filme”. E completa: “Filme em película é coisa de magnata”. A internet também ajudou o trabalho, sendo usada desde a época de seleção de elenco. Todos da Alvoroço Filmes visitavam a comunidade da produtora no Orkut para estabelecer um diálogo entre equipe e elenco. Esse esforço em usar a internet para promover o trabalho gerou interesse e resultou em matérias em jornais importantes do Rio Grande do Sul, além de uma matéria de sete minutos na principal emissora de televisão do estado.
No que se refere à distribuição, a internet foi usada basicamente para disponibilizar o filme para download. Nada mais coerente com uma obra que ficou famosa por ser amplamente comercializada em camelôs.
Causas do sucesso
Como um filme baratíssimo, feito em uma cidade fora dos centros cinematográficos e com atores desconhecidos atingiu tanto sucesso? Seria a identificação local? “Eu acho que é exatamente isso”, concorda Evandro. “Já citei algumas vezes que quando assisti a O Homem que Copiava (do também gaúcho Jorge Furtado) fiquei muito empolgado em ver a Avenida Farrapos em Porto Alegre, porque eu trabalhava perto”, diz. “Nem era na minha cidade, era só porque eu passava lá. Então pensei num filme inteiramente em Alvorada, porque o pessoal ia gostar, ia querer ver”.
Porém, um ponto que poderia passar batido diz muito sobre o projeto, e refere-se à qualidade da produção. “O fato de que a grande maioria assistiu ao filme pensando ser algo muito amador por ser da cidade e acabou se surpreendendo ao ver que tinha qualidade técnica também foi muito importante”, lembra Evandro. “Sei que o filme tem deficiências, que é bem pobre, mas o pessoal da cidade esperava algo realmente muito ruim, e essa surpresa foi bem positiva”, comemora.
Novo projeto, mesmo sistema
A experiência com Dá 1 Tempo mostrou que dava para arriscar novamente. E foi justamente isso que Evandro e Rodrigo fizeram no final de 2009, filmando a adaptação do livro de Evandro, Eu Odeio o Orkut, que agora está em fase de finalização. O filme é o segundo projeto da Alvoroço Filmes, que novamente contou com a participação de empresas de Alvorada para financiar a ideia. E o curioso é que nenhuma das empresas que patrocinou o primeiro filme repetiu a dose.
“Alvorada é uma cidade muito pobre, existem poucas empresas que investem em marketing e é comum ter a mentalidade de ‘já patrocinei, nunca mais precisarei’. Nenhum dos sete patrocinadores do primeiro filme patrocinou o segundo filme, mesmo sabendo que ele teria a participação da Luana Piovani.” Isso aconteceu embora o retorno em exposição para as marcas tenha sido grande, pois Evandro prometeu que o filme seria exibido apenas em Alvorada, porém acabou rodando o Brasil inteiro.
“Eu acredito que os empresários que apostaram no filme viram nele uma forma de amenizar a má fama da cidade, pois Alvorada só aparecia na mídia por questões negativas”, reflete. Convém dizer que Alvorada é um dos municípios mais violentos do estado, com elevadas taxas de homicídio. “Não acho que publicidade tenha sido a questão principal para aqueles empresários. Já para os patrocinadores do segundo filme, creio que publicidade foi o fator principal”, admite.
Ao contrário dos filmes da produtora, o livro Eu Odeio o Orkut foi editado, inicialmente, por uma empresa comercial, mas distribuído pelo próprio Evandro. Já na segunda edição, uma editora assumiu todo o processo. Por que a diferença de formato entre filme e livro, então?
“A diferença é que livro não é um produto muito popular, o brasileiro ainda não tem o costume de ler, então, custa caro e o retorno é mínimo, tanto financeiro quanto de realização”, analisa Evandro. E emenda: “Até mesmo porque nem existe como lançar e distribuir um livro informalmente, piratear um livro sairia quase o mesmo custo da cópia original, já que baixar na internet não agrada muito. A magia do livro está em lê-lo, nas mãos”, filosofa.
Políticas públicas de audiovisual
E qual a opinião de Evandro sobre esse assunto polêmico? “Não tenho uma opinião muito bem formada sobre o assunto, pois estou estudando sobre isso no momento. Mas acho que tem muita mordomia pros grandes cineastas, eles ganham dinheiro público pra fazer um filme, depois ganham quando é exibido no cinema, depois quando vai pra videolocadora, depois quando vai pra TV”, alfineta. “Pra mim, fazer um filme não é questão de dinheiro, é uma realização, um grande prazer. Nem bem finalizei um e já não durmo à noite, pensando em quais dos outros dez roteiros que tenho numa gaveta será o meu próximo filme. Se são bons ou não, isso não me interessa no momento, quero é poder fazer e exibir”, confessa. “Assim como tudo na vida, vamos aprendendo com o tempo e um dia talvez eu consiga fazer um A vida é Bela ou Desejo e Reparação, mas, por enquanto, é o que a casa oferece, ou melhor, o que a casa tem condições de oferecer”, brinca.
Próximos passos
Se a cultura em Alvorada é essa, será possível continuar produzindo filmes nos mesmos moldes sem depender de leis de incentivo ou bancar os custos do próprio bolso? “É impossível continuar nesse molde, não na mesma cidade”, admite Evandro. Mesmo afirmando que a dificuldade é enorme, ele não desiste de realizar mais uma produção. “Tudo indica que teremos que realizar um último Alvoroço em Alvorada (nome que Evandro dá aos projetos de longa da produtora) ou ao menos tentar”, ri. “A ideia é realizar de forma independente o terceiro projeto de longa, em 2011. Mas não descarto ir atrás de leis de incentivo este ano”.
Justamente por todos esses percalços, há planos de tentar emplacar os projetos em outros locais também, como uma forma de continuar filmando. “Certamente sempre teremos um carinho especial por Alvorada, mas a ideia é expandir para outras cidades”, afirma. E, de maneira cética, completa: “Porém, dá pra imaginar que se foi difícil em Alvorada, que é a nossa cidade, imagine em outra”.
E, ao contrário de muitas produtoras, a Alvoroço faz quase que exclusivamente trabalhos de ficção. “Realizamos alguns comerciais, principalmente dos patrocinadores dos nossos filmes, mas não passa disso. Conseguimos viver disso enquanto dura um projeto, mas quando acaba realmente ficamos perdidos até conseguir outro”, admite Evandro.
Pelo histórico de desafios enfrentados e superação, não seria leviano dizer que a possibilidade de sucesso na realização de outros filmes é bem grande. Afinal, desde 2003 Evandro mostra que é preciso acreditar. E insistir.
Muito boa a matéria, Eduardo! Um caso de insistência e paixão pela prática, pela realização, e em formato experimental. Acho que se encaixa bem nos modelos que o projeto Open Business tem mapeado. Aqui no Overmundo tem vários exemplos dos casos, identificados com a tag open-business, e até pouco tempo as iniciativas poderiam ser inscritas no projeto. Quero ver esses filmes! Vou dar uma procurada nos camelôs aqui do RJ...
Há um tempo também escrevi sobre o assunto, num texto bem mais simples, aqui [ http://www.overmundo.com.br/overblog/sobre-o-cinema-independente-nacional ] e hoje aglutinaria mais um zilhão de ideias e experiências à discussão. Penso que a qualidade do produto final de um filme (vídeo) independente não precisa deixar nada a desejar se o processo de produção for muito diferente do industrial, aliás, acho inclusive mais interessantes os modos inventados de se filmar e contar estórias, de experimentar linguagens e modelos de produção. A indústria é algo que cada vez faz menos sentido, acredito. E é bonito ver a busca por soluções - de produção, de distribuição - num terreno que só recentemente começa a ser bolado, reconhecido e mapeado.
Sobre a identificação com as locações e mesmo com os assuntos e universos dos filmes, isso tem um papel importantíssimo. Somos nós contando estórias pra nós mesmos, pras pessoas que estão próximas; uma produção de subjetividade local (claro que possivelmente mais ampla) que se faz ouvir. Já pensei mil vezes que a maior parte dos produtos midiáticos que a maioria das pessoas consome - digo TV, cinema, até internet - ainda é frequentemente produzida em outros lugares. O que é bom, pode ampliar os modos de ver, mas também produz referências inicialmente distantes e pautadas em modos de agir e repertórios alheios. Na primeira das novas edições da revista Filme Cultura, lançada no ano passado, tem uma entrevista com cineastas baianos na qual o Edgard Navarro narra umas coisas desse naipe... Soa bonito, motivador.
Obrigado, Inês!
Fiquei curioso com essa entrevista na Filme Cultura. Existe uma versão online do material?
Sim! http://www.filmecultura.com.br/sistema_edicoes/index/index/edicao/50/pagina/-1 dá pra ler virando as páginas e embaixo tem um link pra baixar o pdf completo. :)
Inês Nin · Rio de Janeiro, RJ 13/2/2011 21:27
Oi, EGS,
(Muito bom vê-lo de volta ao Overmundo!)
ok. Entendi que não era o caso, mas, por favor, mate minha curiosidade e fale pelo menos uma linha sobre o que são os filmes? Fiquei muito curioso com a sinopse de um filme chamado "Eu odeio o Orkut". E mais curioso ainda com a ação de divulgação via Orkut que ele promoveu... hehe.
Oi, Viktor!
De forma bem resumida, é a história de um cara que tá internado em uma clínica de desintoxicação "orkutiana e outros males virtuais", segundo o release do filme. E pouco antes de morrer, ele faz um download das suas memórias prum colega de quarto na clínica escrever suas memórias.
Já deu pra ver que é uma história bem diferente, né?
Muito bom!
Muito curioso pelo filme. O Evandro bem que poderia disponibilizá-lo aqui hem... :)
o filme vai ter sua primeira exibição na praça central de alvorada dia 27/02.
quem tiver por perto e quiser conferir eh soh xegar!!!
p.s.: faço parte do elenco!
alem da luana piovani, tem o julho rocha, e outros atores gauchos ja consagrados, como jairo mattos.
Egs, não acredito que te encontro até aqui. Acabo de receber a news do Overmundo e vi teu nome. Daí pensei. Será que é mesmo o Egs...não! E dito e feito! Ô mundo pequeno! òtimo texto!
Luísa Alves · Porto Alegre, RS 15/2/2011 23:03
Senti falta de um trailler no site da produtora.
Mas quero elogiar a ideia de fazer o filme, o empenho, a garra, a força de vontade. Incrível! Está de parabéns! Vou divulgar no Facebook.
Obrigado por lembrar da exibição do dia 27, Cássio! Acabou não entrando na matéria.
Oi, Luísa! Bom te ver por aqui também! Valeu!
Vilmorum, o trailer pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=0QGT2Ex_sjg
E aqui tem um teaser sobre o "Eu Odeio o Orkut": http://www.youtube.com/watch?v=T8g_aploU8o
Eduardo EGS · Porto Alegre, RS 16/2/2011 06:37
pra quem quiser saber um pouco mais do filme tem tambem uma reportagem de um tele jornal de grande renome no estado.
aí vai o video:
http://www.youtube.com/watch?v=LaIoUQ-UTfg
o filme a que me refiro é o "Eu Odeio O Orkut"
Cássio Shikamaru · Alvorada, RS 16/2/2011 20:44Para comentar é preciso estar logado no site. Fa�a primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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