“AS SEMENTES DA DESCONSTRUÇÃO”
1944, Times Square. Nova York surgindo como a mais importante metrópole no mundo pós-guerra. Na Universidade de Columbia, o calouro Allen Ginsberg, de 17 anos , une-se ao recém expulso escritor Jack Kerouac. Vagando pela suja noite ao lado de seu primeiro mentor, William Burroughs, sacaram a expressão beat do “puto” junkie e poeta Herbert Huncke. Cada qual ao seu modo designou sentidos diversos para a mal entendida expressão, deliberadamente usada pela mídia em massa após a segunda metade do Século XX. Para Kerouac – conseqüentemente para Ginsberg, que à época o endeusava no auge de sua homossexualidade reprimida - beat sigfnificava “espontânea prosódia bop”, forma livre, beatífica e herética de expressar a decadência humana, enquanto o genial Burroughs deduziu sarcasticamente o termo nos verbos “pilhar”, “ser surrado”.
Dez anos depois, a mídia, em sua eterna busca da por rótulos, pasteurizava o indefinível: ser “beatnik” virou moda e multiplicou-se em diversos grupos de contestação, inspiração - e muito charlatanismo - graças à percepção nua de artistas sensíveis ao crescente papel político das artes desde o início do século. Querendo ou não, tais pessoas marcaram a história com um movimento intelectual que uniu todas as áreas sob uma atitude: ao quebrar as regras e atingir ao inconsciente coletivo com obras mais orgânicas, revolucionaram para sempre as manifestações culturais em todos os campos.
1945, Manhattan. Charlie Parker entra em estúdio com Miles Davis, Dizzy Gillespie, Max Roach e outros para pôr em fita o que muitos consideram como a melhor sessão de jazz moderno já gravada. Bird, Diz, Thelonious e Coltrane deram a luz, em jams no Minton’s Playhouse, Harlem, à maior quebra no estilo desde que Louis Armstrong começou a alongar seus solos no meio da década de 20. A maneira telepática e frenética de tocar alimentava os instintos criativos de uma seleta platéia.
Acreditando que Monk, Parker e Dizzy eram os equivalentes modernos de Bach, Beethoven e Brahms, inspirado pelo desrespeito do bebop às pausas e divisões, Kerouac rachou as convenções literárias com métricas nunca vistas, criando uma estética inédita a ponto de seu famoso livro “On the Road” não ser apreciado como literatura pelos críticos de então. Essencial como as obras de James Joyce, “Big Sur” foi o seu romance que melhor condensou a filosofia da contracultura, pelo ritmo alucinado captado nas correntes do subconsciente.
Em dezembro de 1950, em uma resposta à Carta-Épico de Neal Cassady– inspiração constante em suas obras, um maníaco de fala exuberante que catalisou a decadência sublime da vida sem limites - Kerouac anunciava a sua revolução: “Eu renunciei à ficção e ao medo. Não há nada mais a escrever senão a verdade”. A Ginsberg, escreveu: “Começar - não da idéia preconcebida do que dizer sobre a imagem - mas do precioso interesse subjetivo nesta no momento de escrever. Lutar para fazer um borrão do fluxo que já existe intacto na mente(...). Não pense nas palavras, mas em como ver a imagem melhor”. Inconscientemente revolucionário – não como o politizado Ginsberg–, de uma complacência puritana, celebrou até o fim a subcultura de uma Nação, escrevendo sobre os cafés, a maconha, a estrada, sexo inter-racial e outros tabus, desafiando o grupo de intelectuais de NY com sua técnica espontânea. Refém do alcoolismo, Kerouac retroage aos braços da mãe e da mulher nos anos 60, negando a associação de seu nome com contemporâneos, a despeito de ter sido considerado o líder do movimento contracultural (na nossa humilde opinião, Burroughs foi o mestre profeta, Kerouac o esteta e Ginsberg o poeta). O amor pelos valores tradicionais da América – marca em sua produção - e as opiniões conservadoras demonstravam cada vez mais a contraditória personalidade de Jack, que morre em 68 de hemorragia interna, causada na briga com o dono de um bar, defendendo um veterano de guerra aleijado.
Em uma linha semelhante - embora mais intelectualizada que verborrágica -, o poeta Allen Ginsberg, influenciado pelas longas frases jazzísticas da prosa de Jack, acreditava na “infinitude da consciência” do homem e na supressão dessa potencial virtude pela rotina moderna ocidental. Em seu livro mais conhecido, “Howl” (Uivo), Ginsberg transmite a crença sagrada no potencial humano ao mesmo tempo em que esfrega a decadência mundana na cara do leitor, buscando exorcizar toda a vergonha, a culpa e o medo como sentimentos que impõem barreiras à auto-realização e à completude do “Ser”. Patrióticos - cada qual à sua maneira – tomaram rumos diferentes. Enquanto Jack perdia a batalha contra a bebida, o ativista Ginsberg assumia o papel provocante de líder político-ideológico de toda uma geração. Também indispensáveis são seus poemas “Kaddish”, “A Supermarket in California”, “Neruda’s Death” e “Death to Van Gogh’s Ear”. Morre em 1997, deixando um legado eterno.
No mesmo ano, em Long Island, um pintor amigo do “clã” Kerouac-Ginsberg-Burroughs ignora a rígida disciplina implícita do abstracionismo ao usar instrumentos diversos para pintar em telas gigantes. Jackson Pollock foi influenciado por surrealistas como Breton e Gorki – de onde absorveu a espontaneidade da pintura como fonte de liberação de energias, sem noções preconcebidas - e pelo expressionismo de Bacon e Soutine - notórios por sacudir as potencialidades de sensação através da tensão entre a violência chocante da visão e a beleza luminosa das pinceladas -, desenvolvendo um estilo tão incomum que o caipira Pollock, alcoólatra e desafiador, questionava se as suas obras seriam vistas como arte. Talvez por ter criado um estilo que desafiava qualquer padrão até então, ou por ser o único americano nato entre os melhores da época – os excelentes amigos de Kooning e Gorki haviam nascido na Europa -, despertou um interesse até então inédito pela pintura na grande mídia; na classe média dos EUA Pós-Guerra, as reações às colagens de cores e formas variaram da idolatria à indignação.
Os mistérios do subconsciente, desvendados apenas recentemente por Freud, foram materializados no surrealismo destes pintores, bem como na literatura intuitiva dos principais escritores da Beat Generation - de forma inédita, incitando a expansão perceptiva e celebrando a natural ausência dos pré-conceitos.
A peça “Um Bonde chamado Desejo”, de Tenesse Williams, estréia na Broadway dirigida por Elia Kazan, que no mesmo ano funda o revolucionário “Actor’s Studio”. Kazan introduziu aos atores o “Método”, criado na Rússia por um jovem diretor, a partir da peça “A Gaivota”(1898), a primeira de Chekhov. Constantin Stanislavski revolucionou a técnica de atuar pela liberdade ao improviso, baseado nas experiências subjetivas do elenco, dando aos personagens uma forte carga de realidade psicológica. Os diálogos seriam apenas a tela virgem na qual os atores preencheriam com sua alma os sentimentos ao atuar. Fatos desencadeados pela inovação : Chekhov, antes desiludido pelo fracasso de sua primeira montagem, volta a escrever para os palcos; nasce o Teatro de Arte de Moscou; Tenesse Williams ganha notoriedade e estímulo para criar outras fantásticas peças; e Marlon Brando -, com seu estilo unicamente agressivo de atuar - surge como a perfeita combinação de intuição e inteligência nos palcos, posteriormente tornando-se a principal referência beat nas telas. Desde “The Wild One”(1954), filme em que atuou ao lado de Lee Marvin, (os dois representaram as extremidades do Espectro Beat: o impassível Brando era o Ópio, enquanto o irascível Marvin personificava a Anfetamina) até o “Último Tango em Paris”(1974), o ator incorporou valores da contracultura na arte de atuar.
1948. Um certo senhor de nome Alfred Kinsey vai a NY e com a ajuda de artistas, beats e junkies, angaria tanto a corja quanto atores de “Um Bonde...” para entrevistas particulares para o material do seu livro: “Dr. Kinsey’s Sexual Behavior in the Human Male” tornou-se uma explosão inesperada, o primeiro livro médico a ser vendido em livrarias comuns, trazendo várias revelações surpreendentes sobre o comportamento sexual do homem desta época. Em 1952, lança a versão feminina deste estudo, abrindo as portas para o movimento que ficaria conhecido alguns anos depois como a Revolução Sexual.
1950. Sob a mesma filosofia de autoconfiança nos instintos primários nasce um pioneiro programa de comédia na televisão, “Your Show of Shows”, na NBC, com um elenco de escritores estreantes do nível de Woody Allen, Neil Simon, Mel Brooks e Bob Kaufmann. O humor sarcástico de Groucho Marx deixou de ser o limite quando o ácido esquete desintegrou a paródia pueril das séries cômicas feitas até então.
1954. Aldous Huxley aproveita as glórias colhidas pela ficção “Admirável Mundo Novo” para lançar um ensaio sobre as potencialidades abertas pela mescalina na mente. “As Portas da Percepção” acordou o mundo ocidental para a degradação dos sentidos pelos costumes modernos. Com a autoridade de um PhD em Psicologia e Biologia, ele discorre sobre como o cérebro e o sistema nervoso atuam como um funil, reduzindo a expansão sensitiva à medida que crescemos e nos preocupamos com banalidades essenciais: beber água, memorizar coisas, fazer dinheiro e tudo que precisamos com o mínimo de esforço.
Todas estas manifestações guardaram em comum o desejo de desafiar a complacência artística da época através de uma “Nova Visão”. Acabaram por plantar as sementes de uma revolução cultural sem precedentes neste século, influenciando política, música, pintura, literatura, poesia, a revolução sexual, a geração hippie, o cinema moderno, e incontáveis atitudes ignoradas pelos conservadores. Grande parte disto se deve a estes e a muitos outros artistas e intelectuais, como Nietzche, Ken Kesey, Truman Capote, Bertolt Brecht, Tim Leary, William Blake, Mingus, Miles, Hendrix, Faulkner, Marcuse, Dali, Gregory Corso, Rimbaud T.S. Eliot, Kafka, Samuel Beckett, Walt Whitman, Dostoievski e tantos outros. O ideal beat é eterno, representa o inconformismo; e nós Humanos somos, por natureza, insatisfeitos. Um pequeno grupo de grandes pessoas - ao recusarem a aceitação dos valores-padrão da América como permanentes - acabaram por inspirar a fé em um futuro melhor para a raça, e a recusa em acatar o eterno desejo dos poderosos - regras imutáveis - pela crença nas idiossincracias e nas particularidades inexploradas da mente.
Té mais,
Coelho
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