Caju, 1950s

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Luiz Guerra · Rio de Janeiro, RJ
15/3/2006 · 0 · 1
 

Olhar do menino, mitologias e visões do menino, já não precisa distinguir entre almas vivas e almas penadas, mal pode saber o que são almas; e hesitações do adulto, hoje, mais incauto, ludibriado pelo século e o auto-engano, sem entender muito bem o que está acontecendo, sem adivinhar, tão distante agora, quem o teria reconhecido da época em que acompanhava tudo, ou quase nada, atrás das cortinas de uma janela-carmona que dava para um pedaço de cais e cemitério. Viu muita coisa dali: um ladrão com um rabo-quente no ombro saindo da casa vizinha, o padeiro da esquina esfaqueado por um marido ciumento, os bondes cheios de pernas do poeta, buicões pretos tremendos, marujos, bêbados, coveiros, trabalhadores indo e voltando em horas certas e incertas, e o crepúsculo proibido, quando era arrancado do lugar de espreita, do convívio com as putas mais lindas da cidade, que moravam ali. Irene depara-se comigo em plena feira livre, olha para os meus cabelos de palha seca e quer saber muitas coisas de lá, uma outra Irene, dona Irene, como pôde envelhecer se fazia trabalho para os deuses, vestida de ouro e azul, sob o olhar golêmico dos desamparados — uma fisgada no peito, uma saudade repentina, afogada neste rosto enrugado com um sorriso de criança, uma coisa velhíssima do velho bairro, quando a infância, a inconsciência dos rumos e os fantasmas... Caixa, arca-pandora, com seus frutos machucados, recolhidos de barraca em barraca na hora universal da xepa. Outra Irene. Marcada, porém, com o mesmo nome dos nomes, que só lhe pertencia como insensatez dos espelhos. Irene. Sem os filhos agora. Irene. Mãe de todas as coisas, útero e sepultura de todas as coisas — lá me ocorria a invocação, lá se deitavam meus olhos, no terceiro e menos lacunoso volume de seu antigo livro de orações clementinas, em fonte garras-do-diabo, como era habitual entre os filósofos do tornozelo com seus cães de andarilho, mãe desses pobres mortais em extinção, mãe dos outros, mãe-dos-outros, repondo diante de mim o cenário: os últimos barcos, as novas águas de óleo e cocô, o sonhado farol canabinóide, o cais deserto com suas portas trancadas e tapumes de estaleiros, depois de tanto enredo e tanto sonho clandestino. E havia os maldosos que chamavam de Alfândega, sob o macio engodo das promessas ou o pavor à represália, ao arrogante pseudo-Fonseca, homem de novos papiros, o homem-sombra — od ombra od omo certo — que durante nove anos manteve em cárcere privado a dançarina holandesa, na confusa era do falso Herengracht e dos bondes com cheiro de maresia e sabonete, flores e parafina, declarando-a boçal, na mesma voz jesuítica dos sonhos de ultramar e conversão. No entanto, formosa, uma Moça formosa?, demasiado formosa para ficar batendo pernas durante o dia neste bairro asqueroso, segundo ele, olhando para o garoto de cabelos vermelhos que ia acabar se fodendo ali. Gritava possesso para pinguços e estivadores, policiais de mão molhada e vereadores bundões: Irene não estava sempre deslumbrante, à noite, em suas apresentações? Não continuava recebendo em sua alcova os fregueses que pagavam bem? Não se sentava à mesa dos mais fodidos, no mínimo para um drinque com direito a decote e sorriso? Não vivia se derretendo de promessas sob os lampiões vermelhos? Não cuidava toda manhã do seu pardal-dos-telhados, regalo de gregos e troianos, holandeses e lusitanos, operários e guarda-livros? Itinerário, como a boca de um poço fora da cidade: cemitério, asilos, escola pública aos pedaços, campo de futebol, vendedores de mármore e granito, e grandes terrenos baldios, sim, Irene, sim, dona Irene, não estão mais lá os terrenos baldios, tudo construído agora, uma festa, uma grande festa de barracos. E fiz uma feira para ela, com a dignidade dos alfômegas, a comiseração confortável dos humanistas, um cidadão desamparado...



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Helena Aragão
 

Oi Luiz, vc não acha que seria mais interessante postar seu texto no Banco de Cultura e tirar do Overblog? Dá uma olhada em AJUDA para entender as seções do site.

Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 14/3/2006 12:41
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