Diário de um Deus em profunda Depressão - DDD

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geraldo52 · Camaçari, BA
24/7/2006 · 6 · 0
 

“’Ele voltou. Tenta-me. Assedia-me com a felicidade, a alegria, o prazer. Fala em ‘novos tempos’, ‘realizações’, revela-se ‘otimista’. Diz-se ‘viciado em não morrer’. Explica, didático: ‘não saberia viver a expectativa da morte’, do gran finale. Não ama os cemitérios, os ataúdes, as lápides, ignora os enterros, velórios, odeia procissões ou ‘missas’; é um Deus repleto de ‘manias’, ‘superstições’, seus ‘truques’, como gosta de dizer. Reconheço: é um Deus por demais humano (e no entanto não possui aparentemente contradições ou idiossincrasias, não tem defeitos!; Ele sugere, de fato, uma singela, ilusória e pura ‘limpeza’, uma assepsia forçada, forjada e grosseira). De onde, pergunto, Ele surgiu? Qual a sua finalidade e propósitos? Contrapor-se, talvez, a mim? Desafiar-me? Mas eu já desafio-me, já contraponho-me a cada dia! Não preciso para isso da ajuda de outros deuses!
Convidou-me a seus ‘passeios’, seus ‘divertimentos’ (engraçado: Ele, como Eu, sempre anda só, sem companhias). Poderia levá-la, caso quisesse (como Ele sabe d‘ela’? ah!, Ele é Deus!) Recusei. Recusei-me, na verdade. Alem do mais ‘ela’ não é seu tipo (Ele confessou-me, cínico, gostar de ‘outras’ mulheres, ‘muitas mulheres’). Ele, na verdade, não passaria de um Deus amador. Eu sim, seria (in)felizmente o Deus profissional.”

“O meu tempo é um tempo nu, nu e envergonhado, um tempo pudico, que enrubesce, traído por si mesmo e pede, suplicante, riso amarelo, seus trajes.
Um tempo jovem e imaturo e inexperiente. Um tempo nascituro.”

“Alguém disse certa vez, foi em um inverno particularmente rigoroso, que nossos egos estariam se isolando, estanques entre si (cada ego estaria ilhado num universo particular, só dele. Seriam várias redomas e cada redoma seria um universo, uma dimensão personalizada). Antes, argumentam, os egos, coletivos, comunitários, ‘cidadãos’, ‘democráticos’, seriam intercambiáveis, haveriam conexões diversas e complexas entre eles. No entanto, medito, nunca consegui (pois nunca quis conseguir) dividir-me com os ‘outros’, o fato é que a consciência de Deus deve (precisa) ser una e solitária. Isolada e triste – como eu. (...pois na realidade sempre senti-me só: eu continuo e persisto solitário quer esteja em contato com uma ‘multidão’ (no carnaval, por exemplo) ou dentro, imerso em meu mundo, em meu incomensurável.; ...pois, indolente – mas estranhamente exausto – estou sempre apaixonado pelo meu silencio...minha mudez;...normalmente dizem-me ‘estranho’, ‘insólito’, mas aqui no infinito, no absoluto, sou (in)felizmente normal).”

“...quem confiaria num Deus com voz aguda? Eu não confiaria-me...”

“Ele me persegue. Percebo que deseja desafios, almeja duelos, quer um outro Deus para superar, para competir (é um Deus brincalhão e peralta, reparo; na realidade Ele não é um Deus sério e composto, é, afinal, um Deus humano).”

“Sou um Deus reticente e grávido de certas ‘alusões misteriosas’. São as minhas outras dimensões, meus outros universos (na realidade, acredito, meus verdadeiros universos). Pois vivo sempre numa angustiante e pequenina ante-sala, numa sala de espera aguardando ansiosamente uma importante audiência que eu sei jamais ocorrerá (...pois eu, (in)felizmente tenho plena consciência de minhas fantasias, minhas quimeras e utopias. Iludo-me, eu sei, mas sei também que estou a enganar-me...pois eu não apenas sou um Deus velho e cansado...sou principal e fundamentalmente, um Deus obsoleto...”

“...pois a verdadeira questão é a ineficácia, a inocuidade do suicídio...”

“Ele me ama. Confessou outra noite, entre choro e lágrimas, balbuciante e trêmulo (estava muito nervoso). Adora-me desde que nós existimos (sempre?!), desde a eternidade, o início dos tempos, desde a criação, mas receava as ‘repercussões’, o ‘escândalo’. Um Deus pode amar um outro Deus? E deve amar? Amor entre deuses não seria narcisismo? (estou confuso agora...e ‘ela’, como ‘ela’ ficará, como encarará tudo isso? Acreditará em meu amor?)”

“Não sou inferior, bem o sei. Mas, curioso, às vezes sinto-me aquém, abaixo de mim mesmo. Antes de mim (eu já seria meu próprio passado e meu próprio futuro. Eu, hoje, seria um mero decalque do que ainda virei a ser e do que já fui). Como se todas as minhas potencialidades, tudo o que eu sou realmente estivessem sempre carecendo de aperfeiçoamentos, melhorias. Como se eu precisasse sempre melhorar-me e aperfeiçoar-me, tornando-me mais e mais próximo ao meu ideal, ao meu absoluto, a minha perfeição. Sim, porque eu também tenho ambições, eu também tenho sonhos: almejo-me, um dia, sentir-me mais e mais onipotente, ‘saindo-me’ e superando-me e, afinal, numa lógica diabólica e cruel, reencontrando-me como o mesmo e velho Deus imperfeito e falho e defeituoso: Eu!”

“Fico às vezes no céu, numa mesa de bar, ruminando meus pensamentos (em geral sombrios). Cá estou, solitário (mas tenho-Me como companhia!)imerso nesta imensidão, neste universo que eu criei, a espera de que algo aconteça. Mas sei muito bem que nada ocorrerá, pois eu mesmo assim o determinei: no céu inexistem acasos ou imprevistos (às vezes penso n’ela’. É bom pensar n’ela’. ‘Ela’ me faz feliz. E é muito difícil, eu sei, um Deus feliz)”

“Ele sumiu. Sumiu como surgiu. Misteriosamente. Deixou um bilhetinho cor de rosa, com letra rebuscada, caprichada e arredondada como de uma adolescente: ‘Gostei de ti, realmente. Mas nós não podemos nos assumir, infelizmente. Todo o Absoluto está a nos observar, vigilante. Mas valeu a experiência. Parto, esperando te esquecer, porém com muitas saudades. Adeus.’ Foi bom assim. Mas quem disse que eu pensei em assumi-lo?!!!”

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