“É tão claro! E turva tudo”

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EdQue · Brasília, DF
6/9/2007 · 55 · 0
 

Três dias caminhando pelas ladeiras da belíssima Ouro Preto em Minas Gerais não me cansaram. A harmonia da arquitetura e da paisagem só é perturbada pelo barulho dos carros e pelos ecos do passado que ainda se fazem ouvir nos becos e ruas estreitas.

Antes, havia passado por Congonhas e Tiradentes. Saber que enquanto a Europa se vangloriava de ser o centro das Luzes, aqui, no interior do Brasil, um mulato e seus escravos foram capazes de ligar o nosso país (que ainda não existia) aos mais elevados valores universais.

Visitei a esplêndida Igreja de São Francisco, obra de Aleijadinho e Mestre Atayde e também a de Nossa Senhora do Pilar, com seu altar onde reluzem mais de 400 quilos de ouro, sobre os entalhes de Francisco Xavier de Brito. Como mãos humanas foram capazes de produzir tamanha beleza! Isso nos torna humanos, é mostra de superação, é diálogo com a natureza e com outros homens, mesmo com aqueles que estamos há séculos de distância do momento de elaboração da obra. Isso é cultura, refleti.

Fui à Casa dos Contos, de 1782. Por lá o ouro passava para ser fundindo e ter descontados os impostos da Coroa Portuguesa. O solar foi residência do Contratador João Rodrigues de Macedo, homem rico e poderoso, mas que morreu arruinado em dívidas. Especula-se que teria participado do movimento da Inconfidência Mineira, mas é sabido apenas que a Casa foi prisão e local de interrogatório dos conjurados, tendo morrido lá o poeta Cláudio Manuel da Costa.

Na senzala do casarão, que fica nos porões, há uma exposição de objetos que eram utilizados na extração do ouro e no “trato” dos escravos. São todos emblemas da barbárie. Na parte superior do prédio estão expostas moedas e barras de ouro que retratam a evolução monetária do Brasil. O metal, que antes repousava sob a terra, agora fica no primeiro andar, e as correntes, chicotes e ferros usados contra os negros são expostos no porão. Eles são realmente o porão da nossa história.

Ao sair de uma das salas, encontrei no pátio um homem negro trabalhando. Ele utilizava uma espátula para arrancar pela raiz ervas daninhas que cresciam entre as pedras do calçamento centenário. Pensei, então, que a escravidão acabou, mas os negros continuam, naquela mesma Casa, fazendo os trabalhos que faziam há três séculos! Como explicar isso naquela cidade que foi tão influenciada pelo iluminismo setecentista?

Lembrei-me, então, de uma afirmação de Walter Benjamin: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento de barbárie”. A beleza do barroco e a grandeza de Ouro Preto estão assentadas na violência que foi a escravidão. Quanto a isso não podemos fazer nada, mas quanto ao fato de aos negros continuar sendo reservada a mesma parte dessa história, nós somos responsáveis.

No Museu da Inconfidência foram quase duas horas conhecendo objetos e documentos relativos à conjuração e sobre os principais revoltosos. Seus sonhos, sua desgraça. Padre Toledo, Cláudio Manuel, Tomás Antônio Gonzaga, Marília, Alvarenga Peixoto, Bárbara Heliodora. Os filhos da elite mineira que ousaram planejar para o Brasil o mesmo que os norte-americanos haviam feito nas colônias inglesas do norte: a independência e a república. Restos de madeira da forca na qual Tiradentes foi morto simbolizam o resultado da revolta.

Na saída, havia novamente um jovem negro trabalhando no pátio. Nesse caso, planta grama entre as pedras do calçamento. Não há mais ouro a ser tirado da terra pelas mãos negras. Restaram-lhe os espaços entre as pedras da calçada como uma metáfora das relações sociais nas quais os dominados têm de achar brechas para expressar-se plenamente.

A frase de Benjamin não me saiu da cabeça quando no dia seguinte visitei a mina de ouro de Passagem de Mariana. Ela fica à beira da estrada que liga Ouro Preto à Mariana e foi aberta em 1719, tendo sido explorada inicialmente por mãos escravas e depois industrialmente por alemães e ingleses. Fabiano, o guia que nos acompanhou até as profundezas da escavação de 120 metros, disse que os garimpeiros morriam jovens em razão da poeira com gases tóxicos inalada durante o trabalho.

Caminhamos nas galerias de onde toneladas de pedra foram retiradas para extrair 34 mil quilos do dourado metal. No escuro do subterrâneo, pensei nos belos altares dos templos e nos homens que tiveram aquela mina como túmulo para a glória de Portugal e da Igreja. O buraco da mina contrastava com a beleza das igrejas dos mestres do barroco e do rococó. Cultura e barbárie caminham de mãos dadas nessa sociedade em que vivemos, meditei.

Na cidade, subi mais algumas ladeiras, tomei uma cachaça de Minas e fiquei tentando recordar trechos do belíssimo Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles. A poeta fala dos sonhos, dos planos, da devassa e do sofrimento dos inconfidentes, tendo por pano de fundo o ouro que movia Vila Rica:

“Mil bateias vão rodando
sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
infinitas galerias
penetram morros profundos.

De seu calmo esconderijo,
o ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra,
prestígio, poder, engenho...
É tão claro! - e turva tudo:
honra, amor e pensamento.”

Hoje, os olhos do mundo se turvam diante do petróleo, que também vem das profundezas da terra. O que há de mais belo e de mais terrível é feito com a riqueza procedente do ouro negro. Continuamos dependentes das entranhas. Os negros continuam excluídos das riquezas que produzem. E persistimos com a dúvida se a cultura vence a barbárie, ou está assentada nela.

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