Estive visitando por alguns dias a cidade de Curitiba, no estado do Paraná, ao voltar de algumas semanas passadas em Porto Alegre. Nasci nesta última cidade, embora há mais de 10 anos habite os sepulcrais edifícios do plano piloto da cidade de Brasília, a insólita capital do Brasil.
É, brou, estou de saco cheio des primárias dissertações que frequentemente escrevo sobre a vida nesta merda! De tanto observar e escrever sobre o cotidiano neste caos de país ando chegando até a sentir gosto de sangue e fezes na boca – este é o presente sabor do “país do futuro!”.
Então agora vou voltar às cronicazinhas tradicionais, nas quais ao menos me divirto com a idiotice dessa gente - além de apenas sofrer com ela.
Em Brasília vivo o mais que posso afastado do máximo de pessoas que consigo. Tento viver como um “bicho na toca”, trabalhando em horários que me afastem das confusões urbanas e freqüentando lugares em que a maioria das pessoas não freqüentam - o que não é difícil, já que tenho tanta afinidade com as brasilidades populares quanto com os rituais tribais dos Azande, na África. Tenho horror ao brasileiro, quanto mais tipicamente brasileiro ele pareça. O típico brasileiro atual me dá nos nervos, ao vê-lo com suas idéias moldadas pela publicidade, pelo jornal nacional, pela revista Veja ou Época, por telenovelas infantilóides e por filmes americanos de ação, suspense ou romance. O típico brasileiro atual é um total idiota, mas que sempre tenta ser, ou parecer, “esperto”, “gostosa” ou “fodão”. Suportar essa gente não é fácil!
Visitando o Sul do país tenho comumente momentos de ilusão com um Brasil menos decadente. Porto Alegre e Curitiba tinham, e até certo ponto ainda têm (mas agora em menor extensão, vivendo mais escondidos e mais assustados em suas “tocas”) tipos urbanos mais “europeizados”, mais silenciosos e reflexivos, com quem a convivência (ao menos a uma certa distância) é mais fácil, ou, pelo menos, menos medíocre e intolerável.
Ainda reconheço esses tipos quando cruzo com alguns deles nas ruas de Porto Alegre. De forma idêntica ao passarem por mim, também parecem reconhecer-me como um deles. Acho que todos nós, estes esquisitos, já desistimos da vida em grupo, sociável; no máximo, nos solidarizamos entre si sem deixar-mos de lado nossa solidão, trocando rápidos olhares de reconhecimento mútuo ou singelos pedidos de desculpas quando nos aproximemos muito ou nos esbarremos.
Mas não fiquei, desta vez, muito tempo em Porto Alegre: depois de alguns dias, família enche o saco! Fui pra Curitiba. Fazia muito tempo que não visitava a cidade. Tendo tempo livre e disposição, resolvi passear por alguns lugares tradicionais da cidade e ficar, como gosto de fazer, observando a esmo as pessoas. Em outros tempos eu já transitara muito pelo centro de Curitiba à noite, em momentos de vampiragem explícitos, à caça de bocas e bucetas disponíveis, e até de algum papo ou outro que me interessasse por alguns instantes.
Tentei, então, devido a esta merda de saudosismo maldito, da época em que eu era mais humano e sociável, caminhar outra vez pelo centro de Curitiba, à noite.
Consegui caminhar contemplativamente, relaxado, por no máximo três ou quatro minutos. Logo comecei a ser invadido por um pavor crescente das pessoas que se aproximavam. A quantidade de mendigos, moradores de rua, loucos, bêbados e drogados não era tão grande assim, mas era quase o único tipo de gente que havia por ali. Os demais transeuntes noturnos que não pareciam estar nessas condições, mais descaradamente sofridas ou desesperadoras, de algum modo demonstravam estar um tanto quanto desconfiados ou mesmo apavorados por terem que atravessar aquelas ruas às 10 horas da noite. Uma minoria, contudo, da qual logo comecei a ficar mais temeroso ainda, parecia estar totalmente à vontade por entre aquela fauna, como a andar com segurança em um campo minado. Pareciam estar a esperar que otários como eu lhes caísse nas mãos, pra pedir algo ou por distração.
Tive, portanto, nos dias seguintes, que me contentar em caminhar durante o dia, principalmente nas regiões mais centrais da cidade. Infelizmente concluí que a população noturna local já se tornara demasiadamente selvagem para ex-vampiros amadores como eu. Curitiba não conseguiu deixar de ser mais uma grande cidade brasileira afundando-se no horror. E eu havia envelhecido demais, mentalmente, para não ter medo do caos. Estranho mesmo, no entanto, seria se Curitiba tivesse conseguindo passar incólume ä decadência brasileira.
Com as pessoas retiradas artificialmente de cena por algum programa de computador, numa eventual fotografia da cidade, talvez a cidade ainda parecesse a mesma Curitiba sofisticada e civilizada de outrora. Mas não: as pessoas, ao contrário dos prédios, infelizmente, não conseguem viver todo o tempo de acordo com as peças publicitárias que os governos da cidade continuam a produzir. Arquitetonicamente, tudo parece bem. Humanamente, entretanto, tudo vai mal.
Bom, ao menos isso era o que eu pensava. Até que, numa de minhas andanças pela cidade (durante o dia, é claro), acabei deparando-me com um vistoso shopping center. Não gosto de shoppings; de modo que eu não entraria não fosse sua peculiaridade: à medida que eu me aproximava das entradas da imponente fachada do prédio, as mulheres que eu via passar por mim pareciam-me cada vez mais bonitas e sedutoras. Além disso, na redondeza do shopping a quantidade de mendigos e bêbados era suficientemente grande. Devia haver pelo menos um ou algum grupo pedindo esmola a cada 50 metros de caminhada. Era suficiente para que eu me cansasse de ter que ficar o tempo todo dando negativas e tendo que ficar atento e incomodado com possíveis e sutis ameaças.
Dentro do shopping, logo de cara, senti-me mergulhando repentinamente em algum artificial paraíso celestial. Deslumbrar-me com um shopping center a esta altura da vida não estava em meus planos, mas ainda assim deixei-me levar. A sensação de alívio momentâneo, de segurança e tranqüilidade súbitas me fizeram dar ainda maior valor ao que logo de início saltou-me aos olhos: eu parecia realmente ter chegado ao paraíso do bem estar pessoal e da beleza estética. Não gosto da artificialidade arquitetônica de shoppings e suas lojas, sempre cheias de vidros e pisos reluzentes, de muitas luzes e cores espalhafatosas. Muito menos gosta das multidões de pessoas embevecidas e fúteis que costumam freqüentar estes lugares.
Naquele momento, entretanto, aliado a meu cansaço, tanto físico, por ter caminhado muito, quanto mental, por estar saturado da cidade “real” lá de fora, entrei na onda daquele lugar. Uma sucessão de rostos e corpos femininos a passarem por mim, como se estivessem a desfilar em alguma passarela angelical, onde apenas loiras de corpos sarados fossem permitidas, absorveu-me por completo. Deslumbrei-me com aqueles corpos bem torneados, à mostra em fartos decotes, que me mostravam justamente o que cada uma daquelas mulheres julgava ter de melhor e de mais arrasador para os homens.
A maioria claramente estava ali passeando e fingindo distração justamente para ter seus raros momentos de desbunde, de adoração, de franca sedução grupal. Muitas delas, então, se deixavam apreciar. Faziam caras e bocas de “a mais bela do pedaço”. A maioria dos homens fingia não estar ali para olhá-las. Mas eu não! Olhava, olhava, olhava! E me lambuzava!... Olhar ainda não dá cadeia. E elas estavam lá pra serem olhadas. Quanto mais eu olhava, guloso, mais elas posavam, desfilavam, com seu ar exibido e expressão de arrogância. Sentiam-se também no céu. E eu era o diabo. Olhavam-me com desprezo. Mas apenas desprezavam-me após terem certeza que eu as olhava enfeitiçado. Quase todas, ao passarem por mim, fitavam-me por instantes, até ter a certeza que eu não as ignorava. Como a dizer: “Sim, eu sei que você está me achando o máximo, mas eu sou intocável!”
Nesse ritmo, e nessa contemplação, andei pelos corredores de um andar após o outro, sempre com mais e mais mulheres a cruzar meu caminho. Pensei: “Meu Deus, onde estavam tantas curitibanas deliciosas que eu não as tinha reparado antes?!” Como eram maravilhosas! E estavam ali, ao meu alcance, ao alcance de meus olhos, de mau olfato, até de minha pele se em algumas delas eu esbarrasse, fingindo distração; ou mesmo, em meu pensamento, ao alcance de meu gozo se eu me dispusesse a seduzir e a deixar-me seduzir por aqueles olhos deslumbrados; ao alcance de minhas mãos, de minha respiração, face a face, olho no olho, boca a boca, língua a língua... Eu apreciaria como um viciado fissurado cada cheiro daqueles poros, cada sabor daquelas reentrâncias e músculos, cada milímetro de pernas torneadas infinitas horas de academia; cada fragrância a esvair-se em minha memória, a lembrar-me aqueles possíveis momentos de total entrega à volúpia, ao prazer, ao sexo, ao sexo, ao sexoooooooo!!!.........
Toda aquela escandalosa realidade brasileira, de mendigos, bêbados, de crianças sujas e de putas perambulando assustadoramente entre modernosos edifícios e reluzentes carros e ônibus nas ruas centrais de Curitiba haviam se apagado de minha mente enquanto eu me deixava absorver por aquela fortaleza estética artificialmente bela. Minha vontade de apenas gozar feliz e alegremente, de sentir-me um deus entre aquelas mulheres, tendo qualquer uma delas entre minhas mãos e meus sentidos, e de voltar a crer, a partir do prazer total, em um mundo ideal, cheio de beleza e de segurança; tudo isso ao mesmo tempo e ao meu alcance enfim levaram-me com toda a intensidade a fazer com que eu entendesse a maravilhosa beleza dos shopping centers, da modernidade ocidental, da loucura humana, da perversão total, do desespero estético... É isso que dá vida a esse bando de gente imbecil que eu odeio! Mas naquele momento, não. Tornei-me mais brasileiro do que jamais fora:
- Ah... Como era difícil esquecer os mendigos, a decadência social, os conchavos e artimanhas de minha perversa vida de classe média no caos! Mas aí está: em um instante o sexo esvazia-me dessa dor.
A essa altura, continuando a caminhar, a observar e a sentir, eu já devia estar com a mesma expressão fútil e deslumbrada de todos aqueles que passavam por mim, muitos dos quais já deviam ter como hábito se refugiar do caos e do horror neste templo do prazer e da artificialidade moderna.
Sim, eu já me sentia pronto para uma nova vampiragem. E ao velho estilo de outros tempos. Pronto e ávido! Muito ávido por abandonar minhas tocas solitárias e embebedar-me no seio daquela beleza exibicionista. Deviam estar todas carentes de vampiros entusiasmados como eu. Eu iria sugar-lhes a alma, toda aquela energia de vida tão concentrada em tantos esforços para mover sedutoramente seus corpos e para fazer expressões faciais de luxúria, de promessa de gozo, de alegria, de prepotência... Sim, eu queria toda aquela vida, todo o sangue daquele mundo estético idílico. Eu queria o maior de todos aqueles gozos, um após o outro, esfregando-me em todas aquelas pernas, naqueles seios, deixando-me esmagar naqueles braços, sendo engolido por todos aqueles rostos e olhares...
- Ah! Eu quero todos estes olhares me absorvendo, me emocionando. Depois ensandecidos a me verem gozar e a gritar, feito um louco... Descontrolado!...
No auge de toda aquela viagem emocional eu já estava no quarto ou quinto andar do shopping, próximo aos cinemas, a algumas lanchonetes, em sua parte mais luxuosa. Continuava a andar, a admirar e a viajar, quando então deparei-me com uma grande parede de vidro transparente ä minha frente. Ela se estendia por dezenas de metros, como se o shopping se transformasse de repente em um castelo de cristal, um grande labirinto de pequenas salas envidraçadas, transparentes, animadas em seu interior por dezenas ou centenas de pessoas descontraídas, sorridentes e exuberantes. Surpreso, ao olhar melhor, percebi impressionado que não eram lojas. Mas não lojas comuns. Eram algumas dezenas de salões de beleza agrupados em uma grande galeria com paredes de vidro. Muitos salões eram espelhados, cheios de mulheres entrando e saindo, repletos de cabeleireiros, manicures, massagistas, todos a circular em volta de várias mulheres sentadas em cadeiras modernosas, recebendo produtos de beleza e aparelhos coloridos que eram refletidos nos espelhos, a contrapor a transparência dos vidros e a cor preta ou metálica das cadeiras e de alguns poucos móveis estilosos.
Não entendi de cara o que era tudo aquilo. Afastei-me um pouco para ver. Realmente era um labirinto de lojas separadas por paredes de vidro, cada uma fechando compartimentos que eram salões de beleza, cada qual para uma, duas ou três mulheres serem produzidas simultaneamente. Ao todo deveriam ser 15, 20 ou mesmo 30 salões. Não sei ao certo quantos eram, mas eram muitos, praticamente incontáveis para quem olhasse do lado de fora como eu. Havia três ou quatro entradas gerais que davam acesso, por corredores de vidro, a todos os salões. Olhado à distância parecia um grande aquário compartimentalizado, com pessoas agindo normalmente ao mesmo tempo em que, estando lá dentro, eram também uma atração para espectadores situados do lado de fora. No alto de cada entrada, em letras pretas, estilizadas, o nome daquele conjunto de vidro: “LADYLAND”.
Ao ter me afastado e olhado o nome no alto, e entendido que aquele lugar era, em seu conjunto, um grande centro de tratamento estético, a produzir a beleza feminina que vinha me levando a sucessivas fantasias grandiosas de êxtase e prazer, tive um súbito e imediato choque de realidade. Meu entorpecimento acabara. Meu senso crítico instantaneamente me acordou, ao mesmo tempo que me atordoou de um outro modo. De um segundo a outro desaparecera-me todo o estado de excitação e deslumbramento:
- Por que deixaram tão escancarado que até as minhas sensações de prazer com todas essas mulheres eram tão falsas, tão artificialmente produzidas em larga escala!? Deixem que ao menos eu me iluda,s em paz! Seus desgraçados!... Não tenho culpa, nem nenhum desses idiotas que aqui estão, como eu, a se lambuzar, pelo fato de a realidade ter se tornado insuportável! Não temos culpa de ter que fugir para esse ridículo mundo de sonhos solitários para que possamos nos sentir ao menos um pouco vivos!
Voltei-me sem olhar para trás, quase a correr saindo daquele lugar. E pensando:
- Tirem esses vidros daqui, separem todos estes salões, seus filhas da puta! Escondam como é feito tudo isso que me levou ao êxtase. Tudo isso que dá sentido à vida de todas essas mulheres, dos maridos de todas essas infelizes, dos namorados, dos conquistadores, dos voyers... De todas as invejosas, dos cafetões, dos que pagam pra gozar... Escondam que tudo não passa de uma fraude fabricada em série, sem substância, sem essência, sem sustentação por mais do que uma punheta, ou do que uma gozada às pressas... Deixem-me pelo menos ter prolongada, por uma mísera tarde de sábado, a fantasia de que em algum lugar a vida com outras pessoas ainda vale a pena..
Malditos vidros. Abreviaram a morte de um recém ressuscitado vampiro de Curitiba, e me levaram de volta aos meus intocados sepulcros brasilienses, onde vivo a me esconder e a não conseguir ter ilusões.
Para comentar é preciso estar logado no site. Fa�a primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Voc� conhece a Revista Overmundo? Baixe j� no seu iPad ou em formato PDF -- � gr�tis!
+conhe�a agora
No Overmixter voc� encontra samples, vocais e remixes em licen�as livres. Confira os mais votados, ou envie seu pr�prio remix!