OLHOS E CORAÇÃO ] Sucesso no final da década de 80, as séries Sabrina e Júlia, romances sentimentais da Editora Nova Cultural tem público cativo ainda hoje e vende 2 milhões de exemplares por ano
O capitão Hawke é obcecado por encontrar o vilão que destruiu sua família e o impediu de receber a posse da herança de seus ancestrais. Jovem, loiro, alto, másculo, forte, íntegro. Um deus grego. O capitão, príncipe dos mares, tem seus planos colocados em risco quando conhece a bela e destemida Adrienne, moça simples, mas de grande coragem e astúcia. A raiva inicial é, na verdade, o mais puro dos amores que vai mudar para sempre a vida desse dois seres unidos por um único desejo: serem felizes para sempre.
No Centro da cidade de Fortaleza, se desvia da multidão que se atropela. Nas mãos, meia dúzia dos livros terminados em pouco mais de um mês. Eliane da Silva Valentim, 43, simpática morena baixinha e de óculos, caminha até a Banca Ravera, em frente à Esplanada. Lá, Sérgio Freire organiza a pilha de livretos amarelados. A costureira se direciona ao monte em organização, por detrás das revistas pornográficas, em busca de seu tesouro. Lá está, Júlia - Paixão Clandestina, a história do mesmo jovem, loiro, alto, másculo, forte, íntegro capitão Hawker, um dos títulos da chamada Biblioteca das Moças que ainda não leu. Pronto. Está garantida a viagem para um conto de fadas. Mesmo já superando a marca dos dois mil livros entre Sabrinas, Biancas, Júlias, Mirelas e Bárbaras que Eliane consome vorazmente, em dois, no máximo três dias cada exemplar, sempre tem coisa nova, novos títulos com histórias não tão novas assim.
Esses livros eram, para a maioria das moças do final da década de 70, a única fonte de informação sobre sexo. "Minha mãe não me disse o que ia acontecer depois que eu casasse. Fiquei sabendo por esses livros". Eliane casou com 17 anos, sonhando com os príncipes dos livros. Começou a ler pra passar o tempo, o marido trabalhava muito, passava o dia sozinha em casa. Gostou e não largou mais. Comprava, trocava. Reunia-se com as amigas quando ainda morava no bairro José Walter só para conversar sobre Sabrina, Júlia. Na casa que mora hoje, no Jockey Club, um cantinho reservado para as suas preciosidades. "Preciso deles para trocar por outros".
"Quando eu estou lendo, me envolvo. Choro, rio, meu marido diz que eu sou perturbada". A mudança de bairro Jockey Club não diminuiu o contato e as conversas com as amigas, todas casadas, com filhos e fãs da literatura das moças. No telefone, o assunto são os enredos, os desfechos, indicações dos melhores exemplares e, claro, marcar encontros para trocar os livrinhos. "A história sempre acontece em alguns países distantes, Havaí, Paris, me sinto transportada para lá. Me sinto no lugar da personagem. As pessoas dizem que eu sou masoquista, mas eu gosto quando a mulher sofre. Quando é muito melosa, eu não gosto. É legal daquelas quando o cara faz ela sofrer muito e depois descobre que está apaixonado. Ele luta pelo amor dela, ou ela luta pelo amor dele, são as melhores. Quando ele é muito galinha eu não vejo, eu paro de ler".
A costureira faz dos livros sua inspiração. Quer ser mais romântica no casamento, levar café na cama. "Mas meu marido pergunta 'o que é isso, mulher?', ele não é romântico não. Hiii, no pensamento ele é chifrudo! Eu já traí ele com vários homens dos livros". O melhor de todos? O primeiro que leu. Sabrina, Primeira Noite de Amor, segundo Eliane, uma história linda, de amor proibido. "Ela achava que tinha ficado viúva e se apaixonou novamente. Quando descobriu que o marido estava vivo, teve que renegar seus desejos para fazer o que é certo". Nos mais de 25 anos de leitura, já deixou muito arroz queimar de olho nas histórias. É com uma mão mexendo a comida, e a outra com o livro da mão. Só gosta desses livros, não lê outra coisa não. Sobre o preconceito com seus romances, Eliane não se importa nem um pouco. "O importante é que eu gosto e me faz bem". O sobrinho dela, Daniel Campo, completa. "Pelo menos ela está lendo alguma coisa, se ocupando, sonhando".
Na banca do Sérgio, todos os dias, cerca de oito mulheres procuram os livrinhos. As bancas e os sebos são o ponto de encontro das leitoras que querem adquirir aquele título que a amiga falou bem, aquela série especial com duas histórias, aquela história mais bem-humorada ou mais triste, mais picante. Tudo para sonhar. Um escape. Seu livro mais 0,40 centavos é o preço de um exemplar dos usados na banca. "A maioria só quer os antigos, pra trocar, os novos vendem menos, antigamente tinha muito mais procura. E quem vem mais é senhora, a maioria são as mesmas de 20 anos trás", explica Sérgio. Na pilha, um exemplar de 1979: Bianca - Paris, Cidade dos Prazeres. 230 cruzeiros. "Esses aí eu não vendo não. Só troco. Porque temos que ter variedade, senão a cliente muda de banca. E se gente vende um desses, não recupera nunca mais". Sérgio já sabe a preferência das leitoras mais assíduas. A série Sabrina é mais romântica e com sexo light, Júlia é para a mulher madura e independente, Bianca aborda o casamento com humor, e as novas Mirella e Sabrina Sensual são mais apimentadas.
Atolada em livros, revistas, jornais, Zilmar Bezerra agora assume a banca que foi do finado marido. O Maciel, nome da sua banca na Praça do Ferreira, e do marido também, não faz trocas, somente vendas dos livretos novos. "Meu marido levava sempre pra casa aí eu lia. Gostava muito, viajava, era muito bom". O tempo fez Zilmar perder o interesse pelas histórias, mas, entre um cliente e outro, ainda hoje dá uma espiadinha em Sabrina. "Meu marido dizia que era livro de besteira, mas não deixava de levar um lá para casa". As vendas do livrinhos diminuíram muito. "Mas ainda tem quem procure".
Luíza Aurélio também já leu muito Sabrina. Até os seus 15 anos, a cabelereira e professora só queria saber das histórias da literatura cor-de-rosa. "Uma amiga bem mais velha me emprestava e lá em casa lia eu e minhas irmãs. Bem no início da década de 80 era moda, todo mundo lia. Era sempre a história de uma mocinha classe média ou pobre, que encontra um cara muito rico numa viagem, às vezes ela precisava se hospedar na casa dele por causa do trabalho e os dois de odiavam, até se descobrirem apaixonados. Em todas as histórias tinha também um vilão, como nas novelas mexicanas. Só mudava o nome dos personagens e o cenário, que era perfeito: as ilhas gregas, praias afrodisíacas em Acapulco. O mocinho tinha os olhos azul cobalto e eu me perguntava 'que diabos de azul é esse?'". Era fase. Luíza se interessou por outros assuntos, outros autores, embora ainda prefira o romance. "As cenas de sexos eram bem sutis, talvez pela época. Mas o irmão de uma amiga, que era advogado, não queria que ela lesse de jeito nenhum. Colocava os livros debaixo da cama e ela tinha que ler escondido", conta. Luíza, como tantas outras moças pelo mundo afora, enquanto lia, sonhava com o príncipe encantado que traria para ela ovos mexidos com bacon. "Quando descobri que bacon era toicim, pense na decepção".
Para ela a fase já passou. Mas para as milhares de mulheres que desde a adolescência aumentam as cifras da Editora Nova Cultural, especializada em livros de banca, a série de romances sentimentais ainda é mania. Os números, de fazer inveja a qualquer autor de best-sellers, são apenas de exemplares novos, que a editora publica semanalmente, um livro de casa série. Isto sem contar as trocas diárias que acontecem por aí a fora. Grande parte das leitoras prefere as histórias antigas. Dizem que são melhores.
Best Seller nas bancas
Os romances sentimentais ainda são uma febre. Os críticos torcem o nariz para as publicações na linha fast-food, mas a verdade é que vendem feito pão quente. As séries Sabrina, Júlia, Bianca, Bárbara arrastaram uma geração de moças, hoje jovens senhoras, fiéis à literatura água-com-açúcar da Editora Nova Cultural. Pasmem: 2 milhões de exemplares por ano. 40 mil/mês somente da série mais antiga, Sabrina, lançada em 1978. Esses são números atuais, 2004 e 2005 e não dos anos em que a leitura era mania entre as adolescentes. Os preços também são irresistíveis, entre R$ 5,90 e R$ 12,00 o exemplar. O sucesso, claro, não acontece hoje como na época de seu lançamento no Brasil, no final da década de 70, quando um único número chegava a marca de 600 mil exemplares vendidos. Ressalte-se que as edições eram semanais.
Como o secusso perpetua, a Nova Cultural a cada ano lança novas séries, compondo-se hoje de nove títulos diferentes, com assuntos desde romances de época até os que abordam suspense, mas, claro, todos mostram o mais belo amor, romântico e intenso em que é preciso vencer desafios para chegar a um final feliz. As histórias são importadas de editoras americanas, principalmente a Kensington e desde janeiro 2005, algumas escritoras brasileiras entraram para o quadro da Nova Cultural. Por mês, a editora recebe cerca de 1.200 e-mails e cartas de leitoras fiéis dos exemplares. Na estratégia de marketing, já houve até uma promoção para que as leitoras escrevessem seus próprios livros. Não deu outra: centenas de mulheres escreveram suas histórias, seus sonhos e um deles foi publicado.
Para as brasileiras, nada de cenas fortes de sexo, com exceção, claro, das séries picantes. Durante a tradução dos exemplares importados, o principal cuidado é com relação às expressões que se referem a sexo (um exemplo é a substituição de tetas para seios), pois são muito mais explícitas na literatura americana. A leitora brasileira prefere discrição e reclama se ver termos chulos, prefere a narração do ato do amor de uma forma mais abstrata, quase mística.
Os novos folhetins
A repetição de um modelo, que se renova pela variação, e não pela ruptura. Essa é a principal característica dos romances sentimentais, para Simone Meirelles, mestre em letras pela UFPR, que está fazendo doutorado sobre os romances sentimentais. "É um produto voltado ao lazer, e não para a arte. A leitora romance sentimental sabe que o casal vai terminar unido - o importante é como isso acontecerá".
Para desenvolver sua tese, Simone entrevistou 20 mulheres que são leitoras assíduas desse tipo de literatura. O público alvo da editora são mulheres na faixa etária a partir dos 15 anos. Mas as principais consumidoras estão na faixa dos 25 aos 45 anos. "São mulheres que acompanharam a fase áurea desses romances, entre os anos 80 e 90".
O sucesso das séries sentimentais está calcado em alguns fatores. Para Simone, os romances repetem uma tradição que vem de antes ainda dos primeiros folhetins publicados no século XIX, com elementos também dos contos de fadas. Outro ponto é a facilidade de acesso: os livros são encontrados em bancas de revista em todo país, a preços acessíveis, e existe ainda um grande comércio paralelo de exemplares usados, trocas entre leitoras e até leilões na Internet.
O consumo de romances sentimentais tem um histórico que remonta o século XIX. Primeiro foram traduzidos do francês, o que se chamava de novelas, com muitas lágrimas e dramas. Depois, vieram os romances da coleção Biblioteca das Moças, que no começo do século XX chegava ao Brasil via Portugal e começou depois a ser publicada aqui. Um dos maiores autores desses textos era M. Delly, que era na verdade o pseudônimo de dois irmãos franceses.
As leitoras entrevistadas por Simone buscavam, nesses livros, a fuga de um cotidiano massacrante. São mulheres em sua maioria com dupla jornada de trabalho que, quando lêem, fazem algo por si mesmas, não para agradar alguém, não para os outros. "Esses momentos representam as horas em que não precisam se submeter a um universo limitado às paredes de suas casas, horas de liberdade".
Esta não é uma leitura que não necessita de muita atenção. Pode ser feita nos ônibus, em frente à TV, entre uma atividade e outra. Como elas têm pouco tempo para leitura, algumas leitoras entendem que, assim, podem parar e voltar ao texto sem perder o rumo da narrativa. "Elas têm consciência crítica, sim, mas de forma superficial. Percebem que os romances narrados são do plano imaginário e não real. Que é tudo idealizado", afirma Simone.
Matéria publicada no caderno Vida & Arte do jornal O Povo
Bela matéria,Angélica.
Seria bom se essas moças tivessem acesso a textos assim. críticos.
Tõ impressionada com essa apuração! Caramba, essa matéria deve ter ocupado o caderno inteiro no jornal, não?! As frases de algumas leitoras que você entrevistou são antológicas! :)
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 5/12/2006 18:15OI, Helena! A apuração demorou um pouco mesmo, mais de uma semana para achar essas leitoras. O espaço não foi o caderno inteiro, não, mas ocupou uma boa parte.
Angélica Feitosa - Grupo TR.E.M.A. · Fortaleza, CE 6/12/2006 10:53muito legal a matéria, a apuração é demais.
Claudiocareca · Cuiabá, MT 8/12/2006 12:35
Parabéns pela matéria, Angélica! Está excelente!
Aproveito para divulgar que na Unifor existe, já faz algum tempo, um grupo de pesquisa sobre a literatura cor-de-rosa, coordenado pela professora Roberta Manuela Andrade.
Obrigada, Ricardo. Nossa, tenho muito interesse em particpar desse gruo de pesquisa. Como faço para ter mais informações?
Abraço.
Entra em contato comigo (ricsaboia@yahoo.com.br) que eu entro em contato com a professora.
Abs
Sensacional a matéria. Sem apelar pro breguismo, mostrou o quanto é importante esse tipo de cultura no nosso cenário cultural nacional.
AULINHA.com.br · Afeganistão , WW 10/12/2006 22:30Obrigada, Gargamel!
Angélica Feitosa - Grupo TR.E.M.A. · Fortaleza, CE 11/12/2006 10:29
Oi Angélica! Mais uma vez, adorei sua matéria...
Escrevi uma vez sobre Sabrina, Julia, Bianca e afins, faz uns seis, sete anos. Vou procurar o texto e te mando pra você dar uma lida. As histórias das leitoras que eu entrevistei são bem parecidas com as das suas leitoras.
beijo
OI, Natasha! Se você puder mandar, eu agradeço. Estou muito curiosa para ler outras histórias.
Abraço!
Pauta interessantíssima! E muito bem feita, como todos acima já ressaltaram ;)
O que mais me chamou a atenção foi o seu cuidado ao retratar as mulheres, suas vidas e suas história... Com uma delicadeza quase igual à dos tais romances. A matéria é crítica, sim, mas não é preconceituosa. Você realmente mergulhou no universo desses romances e de seu público. Parabéns!
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