Prova de resistência

Clarissa Mastro - Divulgação
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Daniel Ludwich · Brasília, DF
1/9/2010 · 31 · 2
 

O sujeito quando faz uma coisa assim, meio inteligente, sempre corre o risco de ser incompreendido. Quando inventa de fazer um troço muito inteligente, então, nem se fala. A massa ignara não perdoa aquilo que não entende. Vai explicar a um cara acostumado ao Big Brother Brasil que ele não vai ganhar nada se conseguir ser o último a sair da apresentação de Abracadabra. Meu amigo, aqui a prova e o prêmio são outros: quem ficar o tempo exato dentro do teatro do Centro Cultural Banco do Brasil mostra que é inteligente. Não ganha carro, roupão do líder ou imunidade, mas atesta a sua sensibilidade superior. E nem precisa ficar vermelho se, por acaso, você rir quando não for pra rir, resolver ir embora quando ainda for pra ficar ou ficar quando já deveria ter ido embora. Palmas bem batidas sempre afiançam o seu bom entendimento do espetáculo.

“A minha lanterna é muito fraca. Olha lá: a luz não chega no palco. Ah, não, eu vou reclamar. Tinham dito que a gente é que ia fazer a iluminação.” Enquanto examina a própria lanterna, mixuruca e com um papelão de enrolar papel higiênico na ponta, a aposentada que gosta de assistir a ciclos de palestras olha um tanto desconsolada para as lanternas dos outros. Alguns tinham verdadeiros refletores nas mãos. Havia até um, mais exibido, que recebeu uma caneta laser. Segurando com desleixo aquilo que lhe dava uma sensação de espectadora de segunda categoria, ela dividia com a vizinha de poltrona as suas expectativas para mais uma noite de Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. “Eu li que ele já ganhou o Prêmio Shell. O rapaz deve ter algum talento.”

De fato, Luiz Päetow já ganhou um Prêmio Shell na categoria Iluminação por Music hall, e este ano concorre a outro na categoria Especial pela concepção e pesquisa de Abracadabra. Além de currículo, o que não falta ao ator e diretor – que, aliás, já trabalhou com gente como Antunes Filho, Daniela Thomas, José Celso Martinez Corrêa e Gabriel Villela – são críticas favoráveis. Sobre Abracadabra, em texto publicado na revista Bravo!, Gabriela Mellão diz que “as palavras dançam na mente do espectador, assim como os feixes de luz, que, nas mãos de curiosos, acabam por convidar à cena áreas menos ‘teatrais’ teatro, como as paredes e o teto”. Estava errado, portanto, quem pensou que o namorado da loira das pernas de fora apontava a lanterna para o teto por puro tédio.

As primeiras frases de um espetáculo são fatais. Quando do escuro, portanto, surge uma voz monocórdica com um texto bem pontuado e cheio de jogos de palavras, a sua memória logo dá o alarme: roubada. Com alguma esperança, no entanto, você ainda acha que pode haver alguma quebra, que aquilo ainda pode enveredar para alguma coisa que preste.

__ O olho é o lápis do engano.

__ Psiu anônimo. Pseudônimo.

__ Temos um joelho, temos um olho, temos um cavalo.

__ Depende de cada um. Não é um teatro, nem mesmo um jogo, talvez uma fase.

Um velhinho não se aguenta e vai embora. Do meio da plateia, um gaiato dá um mio. Todo de preto no palco vazio, iluminado apenas pelas lanternas do público, o ator continua com o jogo de palavras filosófico.

__ Aumentativo de carinho é ereção.

__ Não sei se é mel ou carrossel.

__ Alguém abriu o refrigerante.

__ O tempo é a paisagem.

Agora é um sujeito da terceira fila que olha para trás, apreensivo. Ele já tem uma das alças da mochila sobre o ombro esquerdo, mas ainda não parece totalmente decidido a ir embora. Uma pequena caravana se dirige à porta de saída. O rapaz se anima. Com o máximo de discrição, ele se levanta da cadeira – e chega a fechar o olho quando ouve ela se dobrar ruidosamente atrás de si. Logo atrás dele, vai embora gargalhando uma menina que passou o espetáculo rindo.

De repente, um cara alto se levanta e, contrariando as expectativas, não vai embora. Bermuda jeans, camiseta, óculos e uma barba marota, ele chega perto do palco com uma daquelas lanternas fortes. Um baixinho se aproxima. Depois de trocarem alguns cochichos, o baixinho vai até um canto do teatro conversar com uma menina da produção do festival. O grandão ainda fica mais uns três minutos ali parado até resolver caminhar pela sala. Com ares de descobridor, o sujeito sai pelo teatro iluminando cantos e fazendo cara de inteligente. Chegando ao lado esquerdo do palco, ele deita a lanterna no tablado e observa. Não satisfeito, pega ela de volta e passa a girá-la. Para encerrar a sua participação, ele grita alguma coisa mal articulada da qual só se entende um trivial “vai sentar”.

__ Ouço o som do osso enferrujando a história.

__ Me diga. Mí-dia.

__ Será que a coisa a ser feita é fique-são?

Às 22h10 a porta de saída é aberta. Próximos a ela, o cara grandão e a menina da produção engatam um papo animado. O número de pessoas indo embora aumenta um pouco, mas ainda há muita gente na sala. No corredor, as pessoas conversam alto, dão risadas. A aposentada que gosta de ciclos de palestras pede a um rapaz que feche a cortina que dá para a saída. “É uma falta de respeito, oras.” A loira das penas de fora se levanta e vai até lá reclamar. Ouve-se alguém explicar a ela que a peça já acabou. Às 22h30 o grandão se despede da menina da produção e vai embora. Sem dar a oportunidade de descobrirmos quem ganharia o carro, ela avisa que o espetáculo já acabou. Enquanto o público explode em palmas, o ator continua dando o seu texto normalmente. A aposentada não se conforma. “Essa garotada não entende nada, não respeita o rapaz que está ali se esforçando.”

Confira a programação completa do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília

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Thiago Skárnio
 

Os comentários são sempre um espetáculo a mais... hehehe

Thiago Skárnio · Florianópolis, SC 3/9/2010 15:11
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Flávia Gabriela
 

O óbvio e o obtuso, de Roland Barthes. Obra póstuma, constitui na prática um novo volume de ensaios críticos essencialmente centrados naquilo a que se poderá chamar estética do visível: a fotografia, o cinema, o teatro e a pintura. Mas também a música tem aqui lugar de relevo, ocupando uma parte substancial do livro. Quanto ao título, foi escolhido com base no ensaio sobre Eisenstein, incluído nesta obra.
Quem não transita entre um e outro: eu sou óbvia, mas também tenho meus momentos de obtusa. É natural! Mas um texto com um pouquinho mais de sentido e mensagem faz falta! Se eu lesse esse livro de Barthes ia querer entendê-lo de forma clara e simples, e se um espetáculo me mostrasse isso eu ficaria satisfeita. Não adianta ler aquelas complicações todas e não entender nada. Ver um espetáculo é a mesma coisa, ele pode fazer o papel de tradução e facilitar a compreensão pra todos. Ainda que seja contemporâneo. Sem com isso ser óbvio, nem obtuso, simplesmente compreensível, capaz de interessar. É um desafio para a cena contemporânea? Ou isso não interessa a ela?

Flávia Gabriela · Itamogi, MG 3/9/2010 17:38
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