É preciso ter muita predisposição para a alegria – além de deixar o superego descansando em casa – para aproveitar de verdade um cruzeiro. A esses pressupostos deve se somar ainda a devoção incondicional ao cantor e compositor Roberto Carlos, no caso do projeto “Emoções em Alto Mar”, um trajeto Santos-Búzios-Santos feito no navio italiano Costa Magica, colosso de 12 andares de gosto tão duvidoso quanto a fase da obra musical do Rei em que ele exalta as mulheres gordinhas.
Por amor incondicional quero dizer não se importar em ouvir “Emoções” 522 vezes por dia: no almoço, no jantar, nos elevadores, no banheiro. “O importante é que emoções eu vivi.” E põe emoção nisso. Tranqüilidade, paz e aquela maravilha chamada silêncio não fazem parte do pacote – de US$ 1600 na cabine mais barata, submarina, por 4 noites, 5 dias e um show de Roberto Carlos.
De "brindes" o viajante ganha ainda apresentações de Tom Cavalcante, caraoquê comandado pelo (o que ele é mesmo?) Miele, aulas de dança, palestras motivacionais e o que mais de “alto-astral” você conseguir imaginar. Roberto Carlos se apresenta em três noites, para que todos tenham chance de vê-lo; afinal, é um teatro grande para um navio - mas nem tanto assim: neste ano navegaram por ali mais de 3 mil pessoas.
Nada de "se chorei ou se sorri": lágrimas no navio, só de histeria, das velhotas simpaticíssimas – e totalmente doidas – que fantasiam sem pudor passar algumas horas na cabine do Rei – esta com varanda e vista pro mar, claro.
Cada passageira tinha uma história para contar, e mais histórias ainda tem Flávio Senna, técnico de som de Roberto Carlos, que, coitado, trabalha bem no meio do público. “Ontem uma senhora gritava, dizendo que tinha pedido um helicóptero para buscá-la no navio, já que não tinha conseguido realizar seu sonho de tirar uma foto com o Roberto”, contou, dando os últimos retoques nos equipamentos para a apresentação de ontem à noite.
Amor e grana
O projeto já é realizado há cinco anos, com uma procura cada vez maior. No ano que vem, serão feitos dois cruzeiros, num navio ainda mais nababesco que o Costa Magica, e as vagas já estão sendo preenchidas. São grupos de amigas de seus 50, 60 anos, casais comemorando bodas, irmãs levando a mãe para a viagem de sua vida e famílias inteiras que têm em comum o amor por Roberto Carlos e uma graninha sobrando.
Quase todos os viajantes são motivados pela esperança de esbarrar com o ídolo no cassino, nos restaurantes ou, quem sabe, em um dos terraços, em um romântico pôr do sol. Mas a verdade é que o Rei não sai de sua cabine para nada, embora a produção goste de espalhar que ele faz seus passeios pelos salões na alta madrugada.
Com outras motivações, por assim dizer, dezenas de jornalistas embarcaram ontem, em Búzios, para passar um dia vivendo as tais emoções em alto mar, fazendo a viagem até Angra dos Reis, onde foi realizado o show, às 23h30, e de onde o navio seguiria até Santos, seu porto final.
Ainda no porto de Búzios, esperando para pegar a lancha até o navio, era fácil separar os repórteres e fotógrafos em dois grupos: os animados e curiosos, a maioria ali pela primeira vez, e outros com uma certa expressão de preguiça, pois já sabiam o excesso de trabalho – e de estímulos visuais e auditivos! – que os esperava naquele dia.
Las Vegas do mundo bizarro
Eu nem sabia ainda que eles tinham, em parte, razão para o desânimo... Mas o fato é que, noves fora zero, é uma experiência e tanto. Depois de deixar a carteira de identidade com os italianos e receber um crachá e um cartão de consumo, entramos num mundo diferente de qualquer coisa que eu já vi – uma espécie de Las Vegas flutuante, e mais pobrinha e úmida, claro.
Antes de tomar uma taça de espumante de boas vindas, um susto: uma repórter do meu lado pergunta: “É ele ali no elevador?”. A cor dos cabelos, de um preto total, é a resposta. É apenas um fã-clone, que de perto nem é tão parecido com o ídolo.
Ainda assim, ele posa para os fotógrafos, faz caras e gestos, dá entrevistas para os jornalistas que precisam encontrar assunto para mandar para os sites. A princípio parece engraçado, mas, à noite, quando ele desce para o jantar com seu terno branco e seu cabelo caricato, tudo me desce meio triste.
Segue-se às boas vindas o almoço, e é muito difícil manter a vista apurada com os movimentos do navio, que deixam metade dos jornalistas completamente mareada. Ainda assim acho que posso afirmar que o que vi no terraço de piscinas, “toboáguas” e jacuzzis tem alguma coisa que lembra o “Jardim das Delícias” de Hieronymus Bosch – as delícias sendo as senhoras gordinhas, entre pratos com restos de sanduíches e caipirinhas que derretiam sob o sol escaldante. Tudo ao som da bateria da Beija-Flor.
O Rei é um doce
De volta ao interior do navio e às maravilhas do ar condicionado central, era hora de lembrar por que a chance de partir nessa aventura é algo para se agradecer. Roberto Carlos é um doce, e a coletiva para a imprensa, de cerca de uma hora, passa voando, graças à simpatia do entrevistado. Viva a realeza! Todas as repórteres são “meu amor”e “querida”; para os homens, tem sempre um “e aí, rapaz?”.
Às perguntas de revistas e sites de fofocas – que superam em quantidade as musicais –, o Rei se esquiva com charme ou dá respostas fofas, como um “todo mundo tem direito ao que é bom”, sobre “ficar” com mulheres. Quando questionado sobre a má fase do Vasco, dá aquele sorriso velho de guerra e manda: “Mas que pergunta embaraçosa!”.
Além disso, Roberto recorre sempre aos seus bordões: “Envelhecer, bicho? Tenho pânico”. E alguém da platéia, claro, grita: “Você tá ótimo, bicho”. A boa forma, aliás, é assunto que vai longe. E ele faz piada, sabendo que vai brincar com a cabeça das senhoras da platéia: “Eu gosto de marombar. É sempre bom tirar a camisa de luz acesa”.
Explico a participação do público: faz parte do pacote do cruzeiro a chance de ser sorteado para assistir à entrevista coletiva. E as mulheres vão “emperequetadas” como se estivessem indo ao tradicional jantar com o comandante.
Terminada a entrevista coletiva, com uma declaração de amor aos fãs, a voz embargada e as lágrimas (ensaiadamente ou não) brilhando nos olhos, Roberto Carlos ainda brinca com os jornalistas: "Até que vocês foram razoáveis". Depois ele volta para sua cabine, de onde só vai sair novamente para o show, no fim da noite.
Como se não houvesse amanhã
É hora de os repórteres passarem por mais um round de “curtição” no navio. Está rolando nos salões o “Coquetel do Comandante”, com hordas de garçons servindo espumante e drinks cor-de-rosa sem álcool. Ao meu lado, uma senhora posa com seguranças do navio - que fazem cara de mau à la agente Smith, de "Matrix" - para o delírio da amiga da modelo que fotografa a cena.
Todos os funcionários do navio estão prontos para ter seus 3 segundos ou 5 minutos de fama. É o caso também dos garçons do evento chamado “Jantar Italiano”. Um evento, sim, porque, entre uma garfada e outra na minha bisteca argentina (mas não era jantar italiano?), quase engasgo quando uma voz comanda, a plenos pulmões, nos alto-falantes, que todos comecem a balançar seus guardanapos, enquanto uma canção típica começa a tocar.
Nada em todo o cruzeiro me impressionou tanto quanto a absoluta ausência de hesitação dos convivas antes de começar a sacudir vigorosamente os panos que até segundos atrás repousavam solenes sobre seus colos, enquanto comiam. É a tal predisposição para a alegria em seu grau máximo.
Dos guardanapos, passaram às danças e, um minuto depois, senhores barrigudos e mulheres com vestidos decotados seguiam as garçonetes – brasileiras e filipinas – em trenzinhos pelo salão, sob os olhos arregalados das mesas reservadas à imprensa.
Enquanto repórteres largavam seus garfos para anotar mais um momento desse dia esquisito, começava a tocar a arquicanção italiana “Volare” e os garçons e garçonetes mais prendados (nenhum filipino, curiosamente) faziam uma coreografia à beira da escada, com direito a toda uma turma (média de idade: 55) imitando os passos atrás deles. Para o gran finale, os “artistas” deslizavam pelo corrimão. Superego para quê?
As boas emoções
Depois disso é hora do show de Roberto Carlos – ainda bem, porque ele me salvou mais uma vez. Antes de o cantor entrar no palco, porém, as senhoras descobrem na platéia Tom Cavalcanti. Na falta do Rei, o humorista vira príncipe e atende as filas de mulheres com câmeras fotográficas a postos, que posam ao lado dele.
Mas Roberto finalmente aparece, sob gritos histéricos e salvas de palmas de fãs, entre elas as minhas. Abre com “Emoções”, toca “Detalhes” (que quase não consigo ouvir, porque uma fã insiste em declamar cada verso antes da hora), faz um pout-pourri com as canções “automobilísticas”, e introduz “O Côncavo e o Convexo” com a frase “Agora uma canção inocente”. O Rei está safadinho, comentam repórteres que costumam acompanhá-lo.
Entre uma canção e outra, uma cena insólita: um casal bem abaixo da média de idade se senta na fileira atrás de mim e começa a brigar, aos berros. O rapaz grita “Sua vagabunda, te trouxe até aqui pra você fazer isso? Vagabunda!”. Nada combina menos com o clima.
Quando soam os primeiros acordes de “Ligia”, peço por favor para o brigão ficar quieto. É o meu momento: com Tom Jobim no telão e a voz sem imperfeições de Roberto Carlos, a canção – que, afinal, inspirou meu nome – faz valer o enjôo marítimo, as imitações toscas das obras italianas nas paredes, o excesso de dourado, os garçons dançantes e as senhoras loucas. Quem é rei não perde nunca a majestade. E eu sigo sendo humildemente sua súdita.
Gostei do seu humor, Ligia. Fiquei imaginando aqui a cena toda, os dourados e barrigudinhos. Pois é, o Roberto tem essa coisa toda meio cafona, que faz parte dele, e é até legal (eu continuo fã do Roberto, apesar da fase das canções gordinhas e de óculos). Mas, acho que ele não precisa de uma produção como essa do cruzeiro fake para continuar sendo o rei. Mas, fazer o quê, se ele gosta. E, pelo jeito, seu público também.
Ilhandarilha · Vitória, ES 11/2/2009 11:45Taí uma cobertura que não li em mais nenhum lugar. E que ratifica o meu medo de cruzeiros, mesmo sem nunca ter estado em um. Com um certo humor, reconheço esse tipo de "imposição da alegria" em quase tudo na vida. Inclusive no Carnaval. É uma celebração coletiva em que, quando você não embarca, tende a ter um olhar de estranhamento tão grande quanto o teu no texto. Mas aí toca aquela música incrível e você entra na onda (como tudo na vida). A mesma onda que você entrou quando o Rei subiu no palco. Porque o Rei, claro, sabe das coisas. Melhor cobertura do evento, Ligia!
Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 11/2/2009 12:27
Oba!
Ilhandarilha, o Rei é o Rei, quem é a gente pra contestar o que ele acha emocionante ou não?
Tou brincando: na verdade, o que mais me incomoda na questão fake é o lance da grana mesmo. Claro que pra todo show vale isso, de muitos verdadeiros fãs não conseguirem pagar pra ver o ídolo. Mas o cruzeiro com o rei é isso elevado à máxima potência.
E, no fim, é só um show. Num lugar pequeno, com uma boa visão do palco e uma chance de brindar com o Rei (não sei se vocês leram, mas um exército de garçons serviu taças de champanhes aos espectadores durante a breguíssima "Champanhe", música do Pepino di Capri - parece piada!), mas ainda assim só um show.
Thiago, obrigada! Nem é uma cobertura, né? Só uma impressão, uma impressão muito estranha! Mas é realmente uma questão de onda, acho. E que onda...
Imaginei o clima Chevy Chase em Las Vegas.
Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 13/2/2009 11:21Chevy Chave em Las Vegas... é isso ai, Sérgio.
Ilhandarilha · Vitória, ES 13/2/2009 12:46
Lígia,
Impagável ! Me senti lá.
Não sou fã, mas tenho boas lembranças do Roberto em minha infância : Diamante Cor de Rosa, Meu Calhambeque.
Que bom que lembranças não envelhecem a gente. Hua...
Genial. Me senti dentro do navio com você. Imaginei a sua cara de perplexidade com cada uma das cenas, mas o bom é que o final valeu a pena, né? Pollyana às vezes vence :)
Elisa Menezes · Rio de Janeiro, RJ 13/2/2009 18:06Qualquer engenheiro naval de terceira categoria , sabe que centro de gravidade de um navio modificado para doze andares fica altamente perigoso...Qualquer mal tempo, uma onda maior batendo de lado, derruba aquela coisa, ainda mais aguentando aquelas musicas batidas, de um rei destronado que teima em reinar para suditos caducos...
victorvapf · Belo Horizonte, MG 14/2/2009 14:55
Ligia, você é ótima cronista. Humorada, também. Mas não invejo a sua viagem. Acho uma perda de tempo ficar fechada dentro de um navio, ainda mais para ver e ouvir R.C. e ainda, levar de quebra o Tom Cavalcanti.
Votado. Ivette G M
Gostei do teu texto, o Roberto carlos já foi rei, hoje é rei da 3º idade, tipo o Elvis no final da carreira, bem, ele faz isso palo amor ao dinheiro, o cachê deve ser bom.
Ótimo texto,parabéns!
Lígia seu relato é puro, ótimo. Roberto sempre será rei,nao importa o que achamos ele sempre vai lotar os espaços, seja o que for.
Mas fico imaginando será o que se passa na cabeça dele em dias como estes? Afinal é humano...
Bela narrativa
votado
O assunto não tinha despertado meu interesse até ver que o relato era seu. Fomos colegas de um curso mas não conhecia êste seu lado cronista. Adorei! Delicioso texto!!
Beijo e até a próxima!
Gente! Li do começo ao fim o belo texto escrito pela overmana Ligia...Como soou meio ofensivo queria refaze lo
Qualquer engenheiro que nao completou o curso de engenharia naval, sabe que e muito perigoso fazer um Cruzeiro num navio deste porte. Sao doze andares gente! O centro de gravidade fica quase na linha d agua, qualquer mal tempo, uma onda daquelas de surfar, pode tombar aquela coisa e provocar serio acidente...ainda mais, relembrando aquelas bela musicas do grande rei, que continua insistindo merecidamente em reinar para uma plateia que se esquece, como eu, que existem muitos cantores que merecem nossa atencao...
Em tempo, um belo texto que eu aqui debaixo, aplaudo com todo merecimento!
victorvapf
haha! ótimo texto! outro olhar mesmo. reforçou meu medo de cruzeiros desse naipe (e existem outros?)... mas tenho ainda curiosidade meio que antropológica de fazer um dia...
Guilherme Mattoso · Niterói, RJ 18/2/2009 11:18
Que divertido, Ligia! Confesso uma pontinha de inveja, adoraria ter embarcado nessa! Estive de férias e por isso perdi o bloco Exalta Rei!, que vagou pela Urca cantando músicas de Roberto e foi parar na frente da casa dele. Para deleite de todos, ele apareceu na janela e ficou um bom tempo acenando para o povo, em êxtase. E o melhor: de graça e sem enjôo de maresia (só se fosse de ressaca mesmo).
Viva o Rei!
Maravilha de matéria. Ri de cabo a rabo, como se estivesse assistindo a um filme tamanha sua habilidade de descrição. Não invejei vc nem os outros porque só de imaginar a bisteca argentina entrando pela goela enqto o transatlântico balançava meu estômago revirou (enjôo até na barca pra Niterói). Mas o momento final me deu um apertinho. Deve ter sido emocionante ouvir "Ligia". Se fosse "Luiza", aí sim, mesmo com enjôo, eu teria morrido de inveja.
Parabéns Ligia!
como vc mesma disse : amor e grana !...taí a fórmula mágica !
excelente sua matéria...e olha que não sou muito ligado no "Rei"...mas que ele é rei é !...disso não tenhamos dúvida !...rs
bj
Digo o mermo: excelente matéria, de verdade, muitícimo béin iscrita - pesá di que tamém não si ligo em RC.
O voto só vale 1 umilde ponto, más nada. O meu, digo. Más eu dô com ademerassão.
Parabéins!
Essas bodas serão inesquecíveis. Ele é o Rei não é atoa.
Antonio Valente · Belo Horizonte, MG 24/3/2014 18:37Para comentar é preciso estar logado no site. Fa�a primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Voc� conhece a Revista Overmundo? Baixe j� no seu iPad ou em formato PDF -- � gr�tis!
+conhe�a agora
No Overmixter voc� encontra samples, vocais e remixes em licen�as livres. Confira os mais votados, ou envie seu pr�prio remix!