Seu Ivo* e a Sociologia

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Evandro Calisto · Salvador, BA
27/8/2006 · 7 · 0
 

Seu Ivo* e a Sociologia

Evandro Calisto
Negro145@yahoo.com.br

Lembrava-me, numa aula em Gandu, uma pequena cidade da Bahia, na turma de Administração, da insistência que um objeto me acompanha por todas as viagens que ando fazendo por esse mundo, o objeto se encontra sempre no hotel. No primeiro dia que o vi foi em Jequié faz quatro anos, depois disso cai no mundo como um tuaregue e sempre ao relaxar no pouso do hotel ao virar a cabeça lá esta ele sempre preto, discreto e enxerido, nunca o convidei para entrar, nunca pedi sua presença e sempre ele esta ali, sempre chega antes de mim, se esconde, não me recebe, sempre escondido, quando eu começo a relaxar ele aparece me observando, uma coisa que não gosto é intromissão, por isso nunca nem conversei, toquei ou pelo menos lhe dei uma gota de atenção. Mas insistente ali estava sempre.
Neste sábado sem nada fazer, olhando o nada do Lago em Gandu com seus rarefeitos patos deslizando, miúdos, numa nesga da superfície d’água, larguei-me na cama e pensei em nada pensar e virei olhar, lá estava ele me observando, também deitado sobre o esqueleto de guarda-roupa que ainda se insistia em pé, conversamos por alguns segundos no olhar e resolvi leva-lo em consideração, pelo menos uma vez.
Abri, magro, esquálido, ainda mais vestido de preto, mais magro ainda, olhei as letras miúdas, mas nem tanto para seu tamanho, diria até confortáveis, pelo menos isso, e comecei a conversar com ele, começa já falando da vida dos outros, como sempre, toda conversa é assim: Você conhece não sei quem? Conhece não sei o quê? È que não sei que veio depois e depois veio o outro que depois... Para! Peraí, peraí Perguntei-lhe o nome, Mateus, tinha um professor lá na escola que se chama Mateus, gente finíssima, gostei da lembrança. Continuei a leitura e conversei com o novo amigo Mateus por mais ou menos uma hora, conversamos sobre antropologia e diagrama de parentesco, conversei sobre política e as relações dos déspotas na antiguidade, conversamos sobre tirania e amor, conversamos sobre intuição e percepção, conversamos sobre geografia e migrações na antiguidade. Tornamos-nos amigos, marcamos um encontro, sema necessidade de marcar uma data, pedi desculpas por sempre ignora-lo, passei a roupa, tomei banho e fui para aula.
Chegando à sala, como acima falei, comentei sobre o encontro que tive e não é que para minha surpresa Seu Ivo numa risada discreta me diz – É rapaz, eu ajudo sempre a passagem para viagem desse seu amigo que conhecestes hoje, ele vai sempre para muitos lugares e eu colaboro com suas despesas! – e o riso discreto me dizia: te peguei! Pensei depois com Mateus na mesma noite, porque cargas d’água um homem se importaria em gastar suas economias na labuta de tentar fazer um objeto de leitura amigo das pessoas? E imediatamente algumas lembranças clarearam os fatos, o conjunto de informações que fala deste senhor sempre evidencia algumas características: empreendedor, justo, honesto, humilde e cristão. Pensei também de como era eu envolvido por todos os jovens que ansiosos frente à nova tarefa da disciplina colocavam em si dificuldades que não existem, olhei para o cenário e entendi a mim, a Seu Ivo a Sociologia e os jovens. E por sorte os jovens tem sempre a lacuna-escape do erro, por jovens serem, e a juventude que aqui se fala não esta relacionada com o tempo que se viveu, mas muito mais pelo tempo que passou e não se viu. Na atitude depreendida de Seu Ivo vi todo o esforço dos verdadeiros cientistas sociais, buscar uma solução humana e muito humana para os dissabores da angustia de viver, Seu Ivo na sua ação ultrapassa o desejo do lucro, do querer apenas por quere, do desejo, da satisfação pelo prazer. No seu ato Seu Ivo percebe o anônimo no lugar que é seu, anônimo e se faz anônimo apenas na intencionalidade de dar e saber que o efeito puro do seu ato pode transformar o mundo. Mesmo que ele radical seja em algumas colocações, mesmo que não consiga entender outras, mesmo que me olhe apertando os olhos humildemente admitindo confusão que faz minhas explanações, Seu Ivo é o que todo humanista gostaria que pelo menos grande parte pudesse um dia fazer, pagar a passagem de alguém, que acreditamos bom para ser seu amigo, sem a necessidade de ganhar, trocar ou comercializar.
Pedi, por esses dias, que os jovens fossem as ruas e tentasse entender o porquê não conseguimos democratizar e fazer de acesso público todas as benesses que nossa sociedade produz, pedi apenas que eles caminhassem e perguntassem as pessoas: o que lhes aflige, o que te faz sentir dor, o que te falta para sorrir? Pedi que estudasse as condições de vida da nossa cidade - e agora me faço incluso de forma ousada, como meu amigo Mateus – Não pedi ainda que ninguém dê de forma espontânea e sem intenções parte de sua vida, pelo contrário pedi que percebessem suas próprias vidas, e não é que vi nas atitudes queixumes da dificuldade de apenas se perceber, queixumes da falta de tempo, da vida corrida, vi os queixumes de que a vida está corrida e paradoxalmente nas aulas todos reclama da morosidade e da falta de novidades da cidade e então conclui que não é a cidade que nada tem, concluí que estamos fazendo pouco para tudo ter. Vi isso explicito na nossa última atividade que versava sobre o Capital, ali estava explicito o que mais chamou atenção de todos: ganhar. Ninguém fez analise de como podemos ser mais amigos, como a desenfreada busca pelo ter nos afeta em ser, não que o texto pecasse neste ponto, pelo contrário. Contudo ao pedir que fosse refeita quase todas as provas não foi querer uma outra visão, mas somente por estar os textos, mesmo nos seus interesses, rudimentares na sua essência, sei bem o quanto é difícil ter em si a atitude do velho Ivo.
Caros jovens todos me pediram orientação sobre a pesquisa, não vamos tirar do bolso nossas moedas para ajudar as pessoas, mesmo porque isso não é ajudar, vamos sim, tentar entender o que acontece entre nós para conseguirmos melhorar tudo em volta, vamos fazer da nossa atividade uma oportunidade de juntos pensarmos um mundo melhor. Se conseguirmos em essência esse espírito pouco vale os critérios da produção acadêmica, se conseguirmos a essência do projeto formata-lo será o mínimo, nossa empreitada carece menos de critérios, de formas e delicadezas, carece sim de você, de mim e de nós, carece sim da beleza do gesto de Seu Ivo em ajudar de forma anônima o anônimo a ser feliz, sabendo que mesmo no anonimato ele nos é presente. Isso sim é fazer sociologia, isso sim é fazer que o conhecimento cientifico pule das paginas dos livros e se torne útil e presente nas nossas vidas.
Obrigado Seu Ivo pela aula de Sociologia, por me apresentar meu novo amigo Mateus e poder, com todos, construir agora esse meu Novo Testamento.

* Seu Ivo é meu aluno no curso de Administração Geral na cidade de Gandu, cristão, Batista, prospero comerciante da rede de eletro moveis, referencia na região pelo espírito empreendedor e por ter sob sua sombra mais de 40 famílias ligadas diretamente a sua empresa. Na sala um aluno paciente, atento, humilde, curioso e invariavelmente intercala sua experiência a minha pobre explanação


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