Minha casa é a rua, rua dos carros que correm com gente suada gritando e buzinando nos sinais. Dos vidros sujos do carro dá pra ver o cansaço, e quando estendo a mão são algumas míseras moedas dadas com displicência e um olhar sutilmente hostil. Verde, amarelo, vermelho, aprendi a contar o tempo no ritmo das cores.
Na padaria, peço dez pães a uma moça gorda com vestido vermelho e óculos na ponta do nariz, escondida atrás do vidro em que está fixado o aviso “fiado só em 3005”. Ela me olha de soslaio deixando os óculos escorregar e quase cair no chão, até levantá-lo com ar de soberba desenhado por uma de suas sobrancelhas erguida.
Vou comer meu almoço na parte onde fica repleta de água suja quando a maré está cheia, mas agora está seca, lá na 13 de julho. Prefiro rasgar a sacola de pães a desfazer os nós porque a fome tem pressa, e como o primeiro pão com medo de que ele fuja. Reconheço os pés sujos em sandálias havaianas pretas gastas, as pernas cheias de hematomas, o short azul, o umbigo grande, os braços fortes, João!
- Me dê esse rango aí vá!
- É o meu almoço.- disse num misto de indignação e medo.
- Tu é ousado mermu né, Zé?
Lutei com todas as forças pra João não tomar o meu almoço. Mordi os dentes, vi minhas veias saltarem no braço. Mas João não estava só, e ele mais seu bando me roubaram aqueles pães bem branquinhos e cheios de miolos, do jeito que eu gosto. Os pães caíram na areia, e eles se lambuzaram de pão e mar. Eu caído no chão chorava de ódio os padecimentos.
Eles eram cinco, e vieram um por um, começando por João, que rasgou o meu short. Eu ali não era homem, com a faca querendo rasgar meu pescoço, eu ali era qualquer coisa sem Deus. Depois eles foram correndo pela areia, rindo e me chamando de viado. Por que João fez isso comigo, se ele sabe da dor, se um dia um corsa fez isso com ele também?
Olha a maré, baixa como o quê, o céu azulado bonito que só onde dizem que está Deus. E ele não tá vendo de lá, não? Ele me largou tão só nesse mundo, qualquer um me pega, me bate, me leva não sei pra onde.
- Que é que você tá fazendo aí, trombadinha? Eu mandei você limpar o vidro do meu carro?
Gostei, mas tenho a impressão que este conto cairia melhor no banco de cultura. Vamos ver o que diz o overpovo nos votos...
Marcelo Rangel · Aracaju, SE 26/10/2006 18:47
obrigada, Marcelo.
Escrevi essa crônica depois de minha mãe ter me contado que viu um menino ser estuprado por outros da sacada do seu trabalho lá na Beira Mar. Duro de acreditar.
Seria legal se crianças e adolescentes tivessem seus direitos respeitados.
um abraço
Pena que o mundo lá fora é diferente daquele que eu criei para a minha existência. Sobre a opinião do Marcelo, mesmo sendo novato por aqui, acredito que o melhor para o texto seja no banco de cultura. Mesmo assim a sua colaboração é muito útil para nós, pelos menos os poucos, seres humanos.
Roberto D. Jr. · Curitiba, PR 27/10/2006 16:03Para comentar é preciso estar logado no site. Fa�a primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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