Caro e emerso Kublai Khan,
Fortaleza é uma cidade banhada pelo Atlântico. E pelas chuvas que caem de janeiro a maio, por aí. Lá, não se fala em inverno, mas em período chuvoso. Durante minha estada na Capital, choveu pacas! Por vezes, o ciclo tem início ainda no mês de dezembro, conforme relatos de meninos que, à minha passagem, saracoteiam numa poça de lama enquanto, do outro lado da rua, um barraco de taipa dependurado no morro lutava contra o vento. Cai, não cai, pendular. Sigo em frente sem esperar uma decisão. Assim a paisagem citadina.
Ora, não me tome por louco. O Brasil, com ou sem turistas, é um país lindíssimo, exuberante em muitos aspectos. Em particular, a sua região nordeste, onde se encontra Fortaleza. Mesmo submersa, mesmo submersa. São quilômetros e mais quilômetros de praias. Que esbarram em quilômetros de barracas e edifícios.
Um corte “cinematográfico” (o cinema, meu bom amigo, é o que há). Falemos das lagoas, que também são parte importante do espaço urbano, descrito não apenas em função da lastimosa Beira-mar, do lascivo turismo sexual e do bodejante comércio ambulante. Tantos adjetivos parecem indicar qualquer coisa entre o susto e a crença previamente estabelecida – o tal preconceito. Aceito a crítica. Fiquemos, pois, nus, substantivados.
Voltando às lagoas, que na cidade não são poucas e limpas, mas em quantidade razoável e costumeiramente sujas. Parangaba, Opaia, Precabura e Porangabuçu são apenas algumas delas; esses recursos dizem bastante dos hábitos que, com o passar do tempo, se perderam, quando as gentes que aqui chegavam, tomadas de ares europeus, instalavam-se às suas margens. De algumas delas, bem-entendido. Desfrutavam, então, de um clima aprazível numa cidade escaldante. Mesmo antes de o asfalto tornar a vida dos fortalezenses, segundo a saborosa linguagem popular, uma “grande cagada”. Ícone das águas que correm selváticas, o hoje repositório de dejetos e, mesmo assim, agradabilíssimo Cocó. Um patamar abaixo, Siqueira e Ceará. Sem injustiças, que se faça a devida referência ao Pajeú, riacho que, nos últimos dias, deu-se por amotinado.
Explico: sob pressão das águas e principalmente da engenhosidade humana, varreu o que encontrou pela frente, lambendo os tetos das casas mais humildes e promovendo um espetáculo somente comparável ao da Pororoca. No caso do Pajeú, encontro das águas com os esgotos e lixo acumulado. Um sinal dos tempos.
Ora, mano Kublai, assim como nas piores cidades do teu reino, aqui também se vêem com facilidade agrupamentos humanos terrivelmente mal-instalados, confrontando à visão de louváveis arranha-céus e automóveis importados um medonho espetáculo. Numa dessas localidades, nas franjas da cidade, já próximo de Caucaia, corre vertiginoso um rio de nome Maranguapinho. Ele, o Maranguapinho, corta parte dos guetos numa das regiões mais miseráveis da “Loura Desposada do Sol”, que, lá, deve, por obrigação, usar equipamento fornecido antecipadamente pelo Corpo de Bombeiros. Escorrendo através de vielas e empurrando para dentro das casas ratos, carcaças de geladeiras, animais putrefatos e demais porcarias, o rio, a exemplo de seu camarada Pajeú e numa escala maior, toma-se, a cada ano, de uma revolta que mil homens seriam incapazes de conter.
Mas, nem só de águas e esgotos vive Fortaleza. Quem quiser conhecê-la em essência (o que pode ser relativamente perigoso), os costumes das gentes, seu modo de vida etc, deve, pois, andar nos seus ônibus, alternativos ou não. De modo que, numa destas manhãs de período chuvoso, apanhei aquilo que se entende por van – um veículo que, mais tresloucado que o pior dos camelos e apinhado de passageiros, qual “impulso elétrico”, atravessa velozmente as ruas da cidade. A rigor, um desafio cuja envergadura certamente deixaria a você, meu bom rei, de cabelos em pé – se cabelos tivesse.
Seguia deslumbrado com a chuva que caía quando, abruptamente, estacou o camelo, digo, a van. Adiante, verdadeiro Nilo numa escala um pouco menos assoberbada. Cumpre esclarecer o seguinte: capitaneando a embarcação, havia um guiador ou “motorista” e, recolhendo metais ou “papel-moeda” como forma de pagamento pela distância percorrida, um “cobrador”. Atrás de nós, serpenteava uma fila de carros e outros veículos, alguns maiores, outros menores que o nosso. Havia ainda meios de transporte curiosos. Refiro-me às chamadas “motocicletas”, que se atiravam nas águas sem medo. Seus guiadores pareciam ainda mais perniciosos que os dos ônibus. E, de fato, o eram.
E aqui me permito um parêntese. Embora igualmente alagados, não percebia ali qualquer traço da presença de casebres. Estávamos defronte a um grande centro onde se comercializava quase tudo, do couro ao alimento, da essência ao “telefone” e ao “microcomputador”, invenções que, veja só, não vivemos para ver. Trata-se realmente de uma lástima. Em suma, funcionando como barreira ao escoamento natural das águas (conforme explicação colhida posteriormente junto aos governos e a estudiosos da natureza local), encontrava-se um “shopping center”. Que nada mais era do que um grande mercado persa, desses que estávamos acostumados a visitar em procura dos itens mais variados.
Em resumo, conseguimos, depois de muita hesitação e mediante alguns cálculos que, julgo eu, consumiram bastante tempo, vencer a maré que se formava e crescia à passagem desastrada de muitos carros. Nosso guiador, receoso do pior, consentiu em transferir o comando da embarcação para o jovem e versátil cobrador. De posse do leme ou “volante”, o rapaz – por quem não se daria um tostão furado -, numa insofismável demonstração de perícia e ousadia juvenis, levou-nos até a outra margem da grande e fétida mancha barrenta. Ao final, ficou claro a motivação do mancebo: exibir-se para uma jovem que, não raro, lhe dirigia olhares suspirosos.
E assim concluo o meu relato acerca de Fortaleza, meu bom Khan. Se calhar vir a cá, pois sei muito bem de seus interesses comerciais e de outros não menos honrosos, cuide apenas em optar por tempos mais enxutos e menos caóticos.
Marco Polo.
As Cidades Invisíveis Brasileiras!!! Que excelente referência a Calvino!
:-D
O máximo esse teu texto, Henrique, o máximo!!
adorei isso. boa ironia, bom ritmo, tudo bom.
André Gonçalves · Teresina, PI 6/3/2007 10:18A lembrança do livro valeu muito. Texto interessante.
Marcus Assunção · São João del Rei, MG 6/3/2007 10:52
Adorei o seu relato,
crítica social repleta de bom humor.
Parabéns!
Esse Grupo T.R.E.M.A. é mesmo bom nesses relatos, parabéns!
Muito bom, Henrique!
Acho que o Fábio disse tudo: o lance é mostrar as diversas cidades invisíveis brasileiras – seja na música, na culinária, na dança, no cinema ou na literatura.
Um sincero agradecimento aos que vão lendo e aos que já leram.
Henrique, meu caro. Eu nem sei o que dizer. Marco Polo é bom demais de se ler. Pronto!
Tiago Coutinho - Grupo TR.E.M.A. · Fortaleza, CE 6/3/2007 16:57Que massa Henrique. Gostei muito do texto =)
Felipe Gurgel · Fortaleza, CE 7/3/2007 13:26tiago, meu filho, valeu por ter esticado até aqui. e felipe, meu caro, obrigado.
Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A · Fortaleza, CE 7/3/2007 13:53Bela sacada lembrar do Calvino. Adorei o texto, Henrique.
Clara Bóia · Blumenau, SC 7/3/2007 22:13Para comentar é preciso estar logado no site. Fa�a primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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