A começar pela data e o local de nascimento, 14 de março, na Bahia, as vidas de Castro Alves (1847-1871) e Glauber Rocha (1939-1981), embora separadas no tempo por quase um século, aproximam-se inevitavelmente uma da outra quando se consideram algumas coincidências que marcaram a trajetória de cada um no amor, na arte, na política ou na literatura. Ambos foram intelectuais militantes, modernos ao seu tempo e, de certa forma, românticos que, com sua obra, reafirmaram a condição humana, com paixão e compaixão. Ambos foram poetas, dramaturgos e revolucionários comprometidos com a luta do seu povo – denunciando através da arte seja a escravidão de um Navio Negreiro, seja a miséria de uma Terra em Transe. E, finalmente, ambos viveram as mais intensas e turbulentas paixões de suas vidas com atrizes que acabariam protagonizando suas primeiras obras, no teatro e no cinema: Castro Alves deu a Eugênia Câmara – grande amor de sua vida – o principal papel na sua peça de estréia, Gonzaga ou A Revolução de Minas, assim como Glauber Rocha ofereceu a Helena Ignez – primeira mulher e também sua maior paixão – um papel no curta-metragem O Pátio, igualmente sua obra de estréia como cineasta.
É claro que parte dessas coincidências pode ser atribuída às conjunturas em que viveram, ambas de grande efervescência política, social e cultural. No caso do poeta dos escravos, o surto de industrialização que ocorreu no país entre 1850 e 1860 acentuou as contradições no seio da sociedade brasileira e alimentou as primeiras idéias abolicionistas, que se fortaleceram após a libertação dos escravos nos EUA, em 1862, mesmo ano em que o poeta francês Victor Hugo publicou Os Miseráveis, obra que influenciaria profundamente Castro Alves. Ao recitar seus poemas, o abolicionista sempre falava mais alto e, freqüentemente, inflamava-se com eloqüência hiperbólica e metáforas arrojadas sobre a condição desumana da escravidão. Nessas horas, sua imaginação alçava vôo na amplidão do infinito, o que levou Capistrano de Abreu a chamá-lo de "condoreiro", comparando sua poesia ao vôo de um condor.
No caso de Glauber, a euforia desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a Revolução Cubana e a utopia trabalhista de Jango, seguidas do golpe militar (1964) e da resistência à ditadura nos anos 60/70, favoreceram o caldo de cultura que alimentaria a maneira dele expressar o mundo, seja através da poesia, do teatro ou, finalmente, da arte cinematográfica. O Cinema Novo – criado por ele e cujo lema era “uma idéia na cabeça, uma câmara na mão” – não apenas rompeu paradigmas na arte de filmar como foi um dos principais movimentos de renovação artística e cultural do Brasil e expressão de militância política para muitos intelectuais que lutavam contra a ditadura que sufocava o país à época. Ou seja, como fizera Castro Alves no século anterior, com sua poesia abolicionista e militante, Glauber também emprestou sua câmera a uma causa, no caso à construção de uma sociedade mais justa e democrática.
A exemplo das coincidências apontadas, outros traços comuns de suas personalidades podem ser atribuídos à influência do poeta dos escravos sobre o cineasta. Ambos eram geniais, trágicos, polêmicos e arrebatadores e tinham premonição de que morreriam jovens – “Quando eu morrer... não lancem meu cadáver/No fosso de um sombrio cemitério.../Odeio o mausoléu que espera o morto/Como o viajante desse hotel funéreo”, Castro Alves. “Eu sou um apocalíptico que morrerei cedo...”, Glauber Rocha. O mesmo pode-se dizer da coincidência de ambos terem optado pelo curso de direito e abandonado a cátedra para assumir integralmente sua arte; ou de terem participado, ainda bem jovens, de jograis e teatralizações poéticas na escola; ou mesmo de terem colaborado intensamente com publicações culturais: Castro Alves, com o jornal de idéias A Luz, e Glauber, com a revista literária Mapa.
Há coisas, porém, que fogem inteiramente a uma explicação racional e se enquadram mais no terreno do imponderável ou do fantástico, como por exemplo: ambos nasceram no mesmo dia e mês, no sertão da Bahia, e ainda crianças se mudaram com a família para a capital; ambos foram atingidos por tragédias familiares – José Antônio, irmão de Castro Alves, suicidou-se e a irmã de Glauber, Ana Marcelina, morreu de leucemia. Anos depois outra irmã sua, a atriz Glauce Rocha, que trabalhou no clássico Terra em Transe, também morreu, ao cair no poço de um elevador. Castro Alves morreu em 6 de julho de 1871, pouco tempo depois de amputar um pé por causa de um tiro acidental em uma caçada. E Glauber Rocha, em 22 de agosto de 1981, aos 41, apenas um mês e meio antes de completar 42, quando, segundo dizia, morreria por ser uma reencarnação de Castro Alves, morto com 24 anos (42 ao contrário). Ambos morreram de tuberculose.
Castro Alves foi enterrado no dia seguinte, no Cemitério do Campo Santo, em Salvador-BA. Passados dez anos de sua morte, seu amigo e conterrâneo Ruy Barbosa proferiu o famoso Elogio de Castro Alves, onde resumia as qualidades literárias do poeta: “O que faz a sua grandeza, são essas qualidades superiores a todas as escolas, que, em todos os estados da civilização, constituíram e hão de constituir o ‘poeta’ aquele que, como o pai da tragédia grega, possa dedicar as suas obras ‘ao Tempo’: sentiu a Natureza; teve a inspiração universal e humana; encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento de sua época” [BARBOSA, 1995, p. 613].
Glauber também foi sepultado um dia após, no Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro, cenário onde anos antes filmara o dumentário Di Glauber - durante o enterro do pintor Di Cavalcanti, seu amigo -, cujo título original era uma citação de Versos íntimos, de Augusto dos Anjos: Ninguém Assistirá Ao Enterro Da Tua Última Quimera, Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. O filme ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, 1977. No enterro de Glauber, o antropólogo e seu amigo Darcy Ribeiro fez o seguinte panegírico: “Glauber passou uma manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender, ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome. O Glauber chorava a brutalidade. O Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura. Ele não suportava, chorava, chorava, chorava. Os filmes do Glauber são isto. É um lamento. É um grito. É um berro. Esta herança que fica de Glauber para nós é de indignação, ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo qual tal é. Assim”.
Para encerrar, portanto, arrisco-me a dizer que tanto um como o outro foram – cada um em seu tempo – intelectuais sensíveis e identificados com os ideais revolucionários. E que, a par de contradições e ambivalências, ambos viveram a história de sua época intensamente, devotando-se dialeticamente com a mesma paixão ao amor, à arte, à política e à cultura como um todo, para eles expressões indissociáveis da vida e capazes, per se, de mudar o destino da própria humanidade.
Saudade me deu dos dois(um por conhecer,outro por amar)
clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 14/3/2008 17:10
Livaldo,
vou reler e prestar bastante atenção. Até na votação vou conferir. Tinha eu uma biografia de Castro Alves, de Glauber, não, alguma coisa esparsa. Vale como tudo. E valeu.
um abração andre.
Se dizes, e como o bem dizes, caro Nivaldo amigo, creio.
E por que desacreditar, se um é o outro em tempo distinto?
Muito bom.
Li na diagonal, vou reler com mais vagar. Mas já gostei, posso adiantar.
Querido Nivaldo:
Achei ótima esta comparação que você fez e que, me parece, tem tudo mesmo a ver. A curiosidade que me bateu foi saber o que foi que o levou a ela, isto é, o que o fez aproximá-los mentalmente? A data do nascimento?
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho
Nilvado,
Estou indo pro parque. Depois de ler um dos escritos da tua marca, sobre duas pessoas apeixonadas e apaixonantes vou fazer a minha marca dos 10 km e melhorar o meu tempo que ando relaxadão.
um abraço, andre.
Olá,Nivaldo!
Vim te visitar tbém, e adorei logo de cara esse texto...sou professora e tinha falado aos meus alunos,ontem,dia nacional da poesia,sobre essas duas apaixonantes personalidades....linda sua comparação...
Lerei mais ...
Um beijinho azulzen..da cor do mar da minha Bahia!
Rai
Nivaldo, obrigada.
Relembrar Castro Alves (meu primeiro amor) e sua vida revolucionária e apaixonada foi emocionante.
Quanto a este paralelo entre os dois geniais artistas ficou perfeitamente construída a semelhança entre as trajetórias e as paixões e, principalmente, entre o amor que ambos nutriam pela humanidade.
Excelente!
beijos
Navio Negreiro e Terra em Transe.
Colocação primorosa de dois grandes deste Brasil e suas coincidências , escravidão e miséria,dignas trajetórias.
Amigo Nivaldo, como dito antes, já agora com mais vagar e atento, tendo lido o escrito, tenho a dizer-te que há nele o tom inquebrantável do que dá ao mundo as alvíssaras.
E elas são necessárias, sabes e o fizeste, ainda que doa mesmo em ti, ainda que gemam as gentes, ainda que ingente a faina, fazes, sabes, o elogio da boa luta.
E, por necessário, ao cabo, aplaudo o que fazes, posto que inflamas.
Avante!
Nivaldo
valeu e valeu a paciência da observação,
vim quebrar o secreto, e reler,
um abraço
Clara, André, Adroaldo, Joca, Valentina, Raiblue, Saramar e Cíntia,
Muito obrigado pelos comentários.
Bjs em todos
votadíssimo,querido!!!
um beijo azul cheinho de axé...hehe
Gostei muito do texto. O paralelo que criou destes dois artistas fenomenais. Um, o maior poeta brasileiro. o outro, um cineasta sem igual. Parabéns!
Paulo Esdras · Brumado, BA 17/3/2008 19:13Rapaz, o importante é que a gente tem Espumas Flutuantes e Deus e o Diabo na Terra do Sol. Essas coincidências não têm qualquer importância. Não são necessárias para falar de dois baianos geniais, como Castro Alves e Gláuber.
Duborges · Santo Amaro, BA 18/3/2008 12:06
Querido Duborges:
Peço desculpas ao Nivaldo por me antecipar à sua resposta. E peço desculpas a você pela franqueza: seu comentário é absolutamente impertinente e inadequado. Você diz: "O importante é que a gente tem...e se, ao menos, indicasse os links mesmo não achando relevante esta sua observação eu ainda podia levá-la em consideração. Se você dorme recitando Navio Negreiro e acorda assintindo o DVD de Deus e o Diabo não é por isso que vai tirar os outros por si. Garanto que há muita gente boa aqui no overmundo que se interessou, a partir do postado do Nivaldo se interessou pelas obras dos geniais baianos. E vc, o que fez para divulgá-las e para se achar no direito de criticar a interessantissima publicação do Nivaldo, pode me dizer?
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho
Querido Duborges:
Preocupado em estar cometendo alguma injustiça, vai que você fosse um especialista em divulgar a vida e a obra de um dos dois ou, até, de ambos, descobri, meio desapontado, que você ~está associado há mais de um ano ao overmundo e, até hoje, não publicou uma linha sequer nem sobre eles nem sobre coisa nenhuma. Desse jeito fica meio complicado minimizar a contribuição dos outros, não acha não? Um típico "Palpite Infeliz"
beijos e abraços
do Joca oeiras, o anjo andarilho
Paulo,
muito obrigado pelo comentário. Abração.
E, Joca, meu querido anjo andarilho,
obrigado pela defesa e elogio. Vindos de você me envaidecem profundamente. Abraços.
Duborges,
respeito sua "opinião", embora discorde do tom, pelo que, inclusive, confesso-lhe que nem iria respondê-lo, não fosse a intervenção carinhosa do Joca. Somente por isso, então, vamos lá: evidentemente, a obra de ambos os artistas está muito acima das coincidências que a história e/ou a vida colocou em suas trajetórias. Em momento algum disse o contrário. E, se você ler o postado com atenção, há de perceber que as coincidências são mais o fio condutor da homenagem. Todavia - desculpe-me -, mas elas são, sim, no mínimo curiosas e - pelo menos para mim - também um excelente gancho para o tipo de matéria a que me propus: de mostrar o compromisso maior da arte desses dois conterrâneos seus com o destino dos pobres e oprimidos - uma coisa hoje cada vez mais fora de "moda". Por fim, quero dizer que, como você, também adoro Espumas Flutuantes e Deus e o Diabo na Terra do Sol, como de resto toda a obra de ambos, embora deva confessar que, como obra-prima do Glaúber, fico mesmo com Terra em Transe. Questão de opinião e ideologia.
Um abraço.
Caros Joca Oeiras e Nivaldo Lemos
Quando eu fiz o meu comentário, não estava querendo de forma alguma desmerecer o texto de Nivaldo, que aliás eu acho que foi muito bem escrito. Eu apenas não gosto da utilização de "ganchos" do tipo que Nivaldo utilizou. Eu considero "ganchos" desse tipo como simples curiosidades de esquina. Não é preciso que eu seja um divulgador da obra destes dois baianos(no Overmundo ou em qualquer outro lugar) para que eu tenha respaldo para emitir esse tipo de opinião, meu caro anjo andarilho.O fato de ser um ser pensante já me é o bastante para ter o direito de criticar "ganchos" como os utilizados pelo caro amigo Nivaldo. Um abraço para ambos.
Querido Duborges:
Se fui veemente além da conta na minha repulsão ao seu comentário – seja como for, acho que não fui grosseiro – peço-lhe sinceras desculpas; no entanto você há de convir que alguma reação era necessária pelo menos para que deixasse claro que "não estava querendo de forma alguma desmerecer o texto de Nivaldo" e, mais ainda, para que confessasse que acha "que foi muito bem escrito". Como não disse logo, ninguém é obrigado a advinhar.
Da maneira que agiu, falando direto o que pensava da forma dada ao texto, se, de um lado, é coerente com a sua aversão aos "ganchos" e mediatizações, por outro provocou em mim aquela reação.
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho
PS Um velho boxeador amigo meu diria que uma luta não se ganha apenas com diretos ( de esquerda ou de direita), mas também com ganchos e jabs.
Que texto excelente amigo Nivaldo. Polêmicas à parte (aliás, não vejo aqui a necessidade de polemizar nada; de vez em quando parece que bate um surto de Paulo Francis nas pessoas...) gostei muito dessa tal intertextualidade que você utilizou aqui. De certo modo, improvável, não é acha? E por isso mesmo, muito interessante.
Um abraço.
A propósito amigo Nivaldo, você como tem um pé fincado no RN, será que conhece alguma coisa da história de Maria Boa?
Aguarde e confie, como diria DIDI dos TRAPALHÕES.
Querido Filipe:
A história que eu ouvi da Maria Boa diz respeito ao grego e a cerimônias onde se engalanam corpos nus. Não sei se é por aí que você quer chegar, mas aguardo e confio.
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho
Caro Felipe Mamede
Não sou da turma do Paulo Francis. Não fiz meu comentário para polemizar.
Aliás, fica até parecendo que o Overmundo é um espaço feito apenas para comentários do tipo "adorei", "que maravilha de texto", "belas palavras", etc.
Duborges · Santo Amaro, BA 19/3/2008 20:20
Querido Duborges:
Olha, sinto em demasia e peço perdão a todos por voltar ao assunto, mas tenho dentro de mim uma pergunta, que pode se desdobrar em outra e que não quer calar:
– Você sabe porque fez aquele comentário? E, em caso afirmativo, a seguinte:
– Por que você fez aquele comentário?
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho
Por que eu fiz aquele comentário? Ora, por que "maiores são os poderes do povo".
Duborges · Santo Amaro, BA 25/3/2008 21:52
Ah tá!
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho
Votadissimo!!! parabéns pelo lindo trabalho fiquei encantada...
beijos no core...
Nivaldo: parabens por essa feliz aproximação entre Castro e Glauber.Vou levar seu texto para os meus alunos. Ah, peço também sua leitura do meu texto "De cuias e cocares", em votação. Abraços, Graça Graúna
graça grauna · Recife, PE 5/5/2008 08:14
Meu amigo!
Espero que entendas...
Tenho desacordo com o tempo e suas dobras. As vezes estou no centro de um buraco negro. Mas, normalmente estou nas beradas dele...Me perco!
Estou aqui,ainda.
saudações pantaneiras
Ps. Sobre a semelhanças de pessoas ilustres, até acho comum, o incrível é vc me fazer ir pesquisar!!!
abraços.
Arlindo,
meu querido poeta, cujo nome é per si homenagem os ares do pantanal, há quanto tempo! É como dizem, quem é vivo sempre aparece, até os que se acham e se perdem nos buracos negros da vida. É um prazer enorme recebê-lo em meu postado.
Abraços.
eu quis dizer: homenagem aos ares do Pantanal. Abração.
Nivaldo Lemos · Rio de Janeiro, RJ 26/5/2008 17:00Antes de tudo parabéns pelo texto e pesquisa. Alguém sabe o poema de Castro Alves que influenciou A Idade da Terra de Glauber?
RafaPorto · Niterói, RJ 13/3/2017 21:08Para comentar é preciso estar logado no site. Fa�a primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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