Em plena era da informática, com tanta facilidade de acesso às máquinas, Seu Antônio continua fazendo sua arte manual, como aprendeu há décadas. A beleza de seu trabalho está na forma rústica de talhar a madeira, nos detalhes que ele inventa, na criatividade única de um artista nato.
Criou os filhos morando na roça, plantando, colhendo e também trabalhando a madeira. Fez postes para currais, porteiras, até as mais delicadas peças que continua fazendo até hoje. Vivendo no mato pôde conhecer a madeira boa para ser trabalhada, uma madeira macia, durável, em sua casa tem peças feitas há 30 anos e estão perfeitas.
Antônio Antunes da Silva, um homem comum, nunca estudou, não existia escola perto de Traíras onde nasceu. Só aqueles que os pais podiam pagar um professor de fora para dar aula em casa aprendiam a ler. Seu pai sabia ler, escrever, era uma espécie de mensageiro, carteiro da época que viajava a cavalo levando as cartas. Nos dias de folga trabalhava a madeira e assim os filhos aprendiam, especialmente Seu Antônio, que era mais atencioso. Segundo ele, era uma maneira de sair do trabalho na roça, da enxada. E faz um comentário brincalhão:
- Acho que eu era mais priguiçoso, pra num ir pra roça, aprendi a fazê cuié de pau, ficá mais quieto em casa.
Hoje com 86 anos, seu Antônio continua moldando a madeira e confeccionando garfos, mexedor de suco, colher, gamela, pilão, peneira, quibano, (que é uma espécie de peneira mais fina) e outros que ele vai criando conforme vai vendo nas lojas.
A madeira está difícil de ser encontrada, diz ele. Tem que andar muito atrás de madeira macia como o caju, goiaba, imburana, jenipapo e outras. Reclama da dificuldade que encontra:
. - Tá difícil fazê gamela de 20, 30 litro porque só encontro madeira fina, mermo assim vou fazeno outras. Acho mió que ficá quieto, mais antes lambê do que cuspí...
O rendimento financeiro com o trabalho em madeira às vezes é bom, quando alguém encomenda um número maior de peças pega o dinheiro junto, dá para fazer alguma coisa. Conta-me que um senhor da Bolívia encomendou uma quantidade grande de colheres e garfos, foi ótimo, deu até para reformar um pedaço da casa.
Sobre o preço de suas peças diz:
- Hoje a gente vive num mundo cum mais ricurso, principalmente na parte de dinheiro, midicina. Antigamente o cabra sufria muito; vendia 5 gamela pra comprá 2 saco de arroz, hoje cum dinheiro duma gamela compra isso. Até trocava bezerro de 1 ano a troco de um saco de sal.
E complementa:
- Hoje dá até pra comprá remédio, os véio pricisa de muito fortificante, ajuda os nervo agüentá trabaiá mais, serve até pra ajudá morrê; um homem muito fraco num tem força nem pra morrê...
A dona Diolina esposa do Seu Antônio o ajuda no lixamento, faz alguma peneira pequena. Mas ela diz:
- Já tô enjoada desse bate-bate do véio, ele num quieta, podia trabaiá menos.
Seu Antônio retruca:
- Que nada minha véia, num vou ficá à toa. Saí pra cunversá com os novo eles acha minha historia do tempo do ronca, não dá; tenho mermo é que fazê meu trabáio, num sei fazê outa coisa!
Conta-me da dificuldade para aprender assinar: foram muitas tentativas até que alguém escreveu seu nome num papel em letras bem grandes, aí foi treinando na areia e assim aprendeu a desenhar o nome. Sente-se orgulhoso disso, mas tem uma frustração por não ter aprendido a ler:
- Se num fosse um probrema que tenho nas vista, até que ia pra escola, mas só enxergo um pouco do ôio direito, tenho medo de isforçá e istragá o outro que tá bom. Mas é triste o camarada que num sabe lê, num aproveita o tempo, num pode istudá o jorná; mas como já tô no fim, vou economizá minha vista pra trabaiá cum a madeira.
Segundo ele, seu pai dizia que não deviam parar de trabalhar para aprender ler e escrever, o mais importante era o trabalho; e os aconselhava para um tempo futuro escrito na Bíblia que lia para os filhos sempre. Com muito orgulho Seu Antônio repete as palavras do pai:
- Oceis tem que aprender trabaiá; lê e escrevê num tem importância, homem tem que trabaiá. Ainda vai chegá um tempo que oceis vai vê muita coisa e num vai têr pra quem contá, o povo vai tá muito sabido. Hoje a gente num vê muito, mas tem quem ouve, no final dos tempo vai tê muita coisa pra se vê, mas num vai tê pra quem contá; o povo num vai querê ouvir a gente mais; até os inucente vai acabá, vai sê um mundo só de gente véio...
Ai ele explica:
- A sra. tá vendo como que hoje tem sabiduria dimais, ninguém iscuta os outro. Num tem quem ouve por causa da televisão, do rádio, do tal de computadô... Intão a gente num tem pra quem contá nada, eles sabe tudo. É isso que meu pai quiria dizê.
Seu Antônio fica pensativo uns segundos; suspira, arruma o chapéu e recomeça a trabalhar. As mãos hábeis seguram o cabo da enxó que vai formando um buraco na prancha de madeira, moldando mais uma gamela, mais uma obra do grande artista.
Obs: um vídeo com Seu Antônio está disponível no banco de cultura.
O título sugere que o artigo trate da arte de fazer utensílios em madeira, entretanto, o conteúdo é mais relacionado à vida e dificuldades encontrada pelo Seu Antônio.
Há orações longas que podem ser divididas.
Colher de pau, além de mostrar o trabalho artesanal na madeira, pretende mostrar outro lado também, o jeito de viver do homem do cerrado, suas dificuldades e a persistência em manter a tradição.
Mas obrigada, são sempre válidas as sugestões.
Abraços
Sinva
Sinvaline,
consegui recuperar minha senha!! Essas pessoas, como o S. Antonio e que engrandecem este País, assim como a Dna Pretinha, de Arraias. Parabens pelo registro.
marco antonio
Que bom que o seu Antônio conseguiu viver até hoje com as suas colheres de pau. A foto principal, o detalhe da fotografia...tá muito bacana. Um abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 10/10/2007 10:45To ansioso pra ler esse, mais tarde volto agora não posso.
Higor Assis · São Paulo, SP 10/10/2007 15:36AGUARDEM, VOU POSTAR UM VÍDEO DO S. ANTÔNIO TRABALHANDO COM A MADEIRA.
Sinvaline · Uruaçu, GO 10/10/2007 16:01
Sinvaline, linda a foto de abertura. A sensibilidade faz jus à simplicidade e à história de Seu Antônio.
Uma perguntinha: Traíras fica em Goiás?
Abraço.
Realmente a foto tá linda!E realmente essa sua garimpagem cultural é um tesouro.Um Brasil que tem sua cor, seu cheiro, sua textura de paus e palavras.Valeu!
Veronica
Sinvaline, passei um tempão longe da rede. Grata surpresa retornar hoje com essa beleza de história. De cara, adorei a foto de abertura, os movimentos das mãos do Seu Antônio, numa a firmeza da determinação (retenção) e na outra o movimento para o entalhe (ação), o equilíbrio de forças. A foto como que captura o nosso olhar. Também adorei ser levada pela costura da sua narrativa, entremeada de pespontos da fala do Seu Antônio. Dignificante ouvir as vozes desse Brasil de dentro, profundo, encantatório e determinado dessa brava gente.
Beijo grande.
Votado. Belíssimo e importante texto, que resgata costumes brasileiros, revigorando tradições e valores fundamentais da nossa cultura, não raramente injusta para com grande parte de nossos compatriotas. Grande abraço!
Lobodomar · Guarapari, ES 12/10/2007 07:20
São esses deliciosos anacronismos que fazem a vida bela. Parabéns, Sinva!
abcs
Querida Sinvaline,
eu aprecio muito a forma como descreve as coisas de nossa terra, o canto chão.
Vc é realmente a maga catalizadora do Centro-Oeste...
bjs
Cylene
Obrigada a todos que comentaram. O Brasil é rico de gente como o S. Antonio. O vídeo sobre seu trabalho, mesmo que demore um pouco a abri, vale a pena conferir.
Obrigada
sinvaline
Já havia votado aqui mas não me liguei que a colaboração era tua Sinvaline.
Gosto muito de matérias que contextualizem o novo e o antigo. O antigo como opção ao novo superficial.
Sem falar que tua matéria é importante para o arquivo histórico brasileiro!
Grande abraço!
Muito bom Sinvaline. Bela matéria! Nossa gente... Parabéns!
Nydia Bonetti · Piracaia, SP 13/10/2007 22:42Para comentar é preciso estar logado no site. Fa�a primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Voc� conhece a Revista Overmundo? Baixe j� no seu iPad ou em formato PDF -- � gr�tis!
+conhe�a agora
No Overmixter voc� encontra samples, vocais e remixes em licen�as livres. Confira os mais votados, ou envie seu pr�prio remix!